sábado, 29 de novembro de 2014

Adeus, PD James!

PD James faz parte de uma saga de escritoras de romances policiais
que nos deram tipos inesquecíveis como  os detetives
 Cordélia Gray e Adam Dalgliesh criados pela escritora.

2014 parece um ano de extermínio.  No dia 27 de novembro, morreu a escritora inglesa Phyllis Dorothy James, Baronesa James de Holland Park, título concedido a ela pela Rainha Elizabeth II. PD James, como era mais conhecida, é uma das minhas escritoras preferidas no mundo das histórias policiais, um gênero que sempre povoou minha cabeça e que hoje me mostra que eu gostaria de ser um escritor de livros policiais. Mas isso será apenas um sonho, nada além disso.

PD James morreu aos 94 anos e sempre penso que a imortalidade do autor conferido pelas obras deveria ser também a do mortal. Escritores deviam ser como vampiros, viver mais de 500 anos, com juventude eterna e mente criativa para produzir o máximo que pudesse. Mas são mortais e deixam o vazio dessa ausência.

Perdemos as referências de nosso tempo, não importa se essas pessoas morem na mesma cidade que a gente, ou em Oxford, como PD James. É como se fossem parentes de convivência tão próxima que dizer adeus fica difícil.

Preciso acreditar que essa saudade é boa e que vai me fazer olhar a vida com gosto. Por hoje é só. Não sinto vontade de escrever. Aliás, há algumas ideias tomando forma e alguns textos em produção. Preciso mergulhar de novo nas águas das letras e ver o que trarei à superfície.


Adeus, PD James!

sábado, 22 de novembro de 2014

Pequena mostra em preto e branco







Durante cinco dias publiquei no Facebook fotos em preto e branco, incentivado pela fotógrafa Gysa Chris. São recortes de Belém feitos a partir da janela do meu apartamento, com exceção da foto do barco, feita na baía do Guajará. Inauguro aqui uma pequena galeria na Berlinda, onde sigo viagem colhendo novas histórias para contar depois.

sábado, 15 de novembro de 2014

Palavra e despalavra



A nudez dos anjos e dos homens concretizadas na tela nada revela além do corpo, da forma, mas é uma ode ao organismo vivo e ao mesmo tempo ao ser etéreo na composição do artista. Alguns dizem que o corpo é a casa da alma ou o seu cárcere, que não pode ser maculado para não macular a alma. Mas a alma não precisa da pele. Ela já flutua no divino líquido amniótico, onde a nudez não é castigada. A nudez todos podem ocultar sob ricas sedas e armaduras, por convenção ou punição. Mas o nu é concebido sem pecado. No mais, a contemplação e o desejo podem mudar a sentença na criação do elogio ao belo e aos homens e mulheres dizer que a nudez pode ser premiada pelas ondas da paixão, pela febre do amor, pela arte a botar beleza em nossos olhos e em inesquecíveis noites e madrugadas. Ou à luz do dia.

Esta tela é de Hostyano, um artista brasileiro, preciso conferir de que estado nordestino. Assim que souber detalhes, volto aqui para atualizar informações.

Conheci esta tela há anos, na casa de um amigo que pra mim é um espaço encantado. Atualmente nos vemos pouco, mas qualquer brecha para um encontro já me deixa imensamente feliz. Como já disse outra vez, ir vê-lo é como se vivesse uma versão do conto Música para Camaleões, de Truman Capote, um escritor que está entre os meus preferidos. Com direito a chá e bolo caseiro. Ele é muito discreto e por isso não digo seu nome, posso batizá-lo de Wolf, um desgarrado. Tem testa alta e ar nobre. Olhinhos brilhantes, buliçosos e voz que prende pelo timbre e pelos causos contados.

Fui visitá-lo na sexta-feira. 15. Arranjei um pretexto rapidinho: devolver um livro do Goethe, um diário do autor sobre sua viagem à Itália. Quando a porta de abriu, meu olhar começou a passear pelas paredes do corredor, uma galeria. Na sala, entre tanta beleza, há três telas do Waldir Sarubi que me deixam encantado. E mais não digo, por egoísmo.

Entre conversas sobre literatura – eu adoro quando me traz livros de poetas chineses e lê alguns trechos ou me deixa passear os olhos pelas páginas incríveis, com poesias traduzidas e no original, que mais parece um bordado desenhado. E a conversa desvia para lembranças e vida alheia. Nossas angústias e sonhos. Solidão e saudade. E um desfile de gente que passou por nós, desde a época em que eu pensava se o teatro a casa que eu queria habitar.

Inevitável que os mortos viessem à tona. Mas a tarde voltou-se para Manoel de Barros, o poeta mato-grossense que morreu no dia 13. O livro do Goethe me fez ver a imagem nascendo da palavra ou a palavra materializando-se em imagens. E eu encerrei a apresentação que eu ia fazem, com uma visão poética que descobri num poema de Manoel de Barros, chamado:

DESPALAVRA

Hoje eu atingi o reino das imagens, o reino da despalavra.
Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades humanas
Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidade de pássaros.
Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidade de sapo.
Daqui vem que todos os poetas podem ter qualidade de árvore.
Daqui vem que os poetas podem arborizar os pássaros.
Daqui vem que todos os poetas podem harmonizar as águas.
Daqui vem que os poetas devem aumentar o mundo com suas metáforas
Que os poetas podem pré-coisas, pré-vermes, podem pré-musgos.
Daqui vem que os poetas podem compreender o mundo sem conceitos.
Que os poetas podem refazer o mundo por imagens, por eflúvios, por afeto.

domingo, 9 de novembro de 2014

Quatro pedrinhas nos jogos da memória

Imagem BG, o Trabante (ou Trabi) famoso carro da Alemanha Oriental. Ele virou
peça de colecionador e da Ostalgie, onda de  nostalgia da antiga Berlim.


Quatro pedacinhos de pedra. Não são amuletos, mas é incrível como eles têm a vibe de Berlim, como uma grande cutucada nas minhas emoções. Não seria diferente, ainda que eles sejam souvenir do muro. A partir deste domingo, a cidade estará sob novas luzes com a festa dos 25 anos da queda do muro.  Em pensamento – e em sentimentos - estou por lá.

 É outra Berlim. Mudou. Há uma nova geração escrevendo a história desse tempo, sem o mesmo entendimento e afetos dos velhos símbolos de uma época de riqueza antes da guerra, do terror da guerra e dos anos sombrios que vieram com a divisão de fronteiras e de corações, até que veio 1989, quando o jogo mudou e desmontou o tabuleiro da guerra fria.

 Entre e idas e vindas, estive em Berlim cinco vezes, na primeira, ainda havia o muro e foi uma sensação esquisita apanhar um ônibus no centro da cidade, na famosa avenida Kudamm, e atravessar pro lado oriental a partir do Check Point Charlie. Fiz poucas fotos desse passeio, usando ainda filme colorido, em negativo. Elas se perderam em algum trajeto depois que saí da casa que era dos meus pais e fui morar só.

          Não eram fotos espetaculares, só registros de viagem, sem valor jornalístico e, acho que, nem mesmo sentimental. Eram fotos amadoras, tiradas no modo automático e algumas estavam desfocadas. O melhor arquivo ficou mesmo por conta da minha memória. E da minha bagagem de marinheiro de primeira viagem para quem tudo virava souvenir, de um postal de propaganda a um papel de bala. Até hoje guardo dois pulôveres que relutei em me desfazer.

             A primeira pedrinha que eu ganhei veio logo depois da queda do muro, era um pedacinho de concreto que de um lado tinha vestígio de tinta em verde e amarelo. Não lembro muito bem onde foi parar. Mas lembro de que durante um bom tempo eu a levava comigo para onde ia, no bolso da camisa, na calça, na mochila e me achava uma pessoa absurda por causa disso. Acho que era tentativa de compor algum personagem que poderia aparecer um dia. E apareceu. Já existia, na verdade.

             Eu o encontrei escondido atrás das páginas de uma coletânea de contos alemães. Quando li História cotidiana de uma rua berlinense, de Günter Kunert, vivi aquele instante em que a gente não sabe se o que se está sentindo tem algum sentido, se é verdadeiro ou apenas o impacto provocado pela emoção tecida no tear do autor. Mas não parei de ler e fui até o fim na mesma hora para saber o que resultaria desta provocação. Como eu previa: alegria e tristeza num única célula. A esperança e a solidão do senhor Davi Platzker, o personagem, é tocante. Entre as ruínas de Berlim no final da guerra, ele procura recompor na memória o que era a cidade, olhando um velho mapa urbano. E no meio da ruína, depois de algum tempo de contemplação, descobre que já estava na rua que procurava, a antiga rua onde morou.

 Há uma perceptível simbiose entre Herr Platzker e o escritor. Gunter nasceu em Berlim, no dia 6 de março de 1929. Tinha dez anos quando a Alemanha invadiu a Polônia clicando o botão da mais sangrenta guerra mundial. Ele foi membro do partido comunista da Alemanha Oriental, do qual foi expulso e conseguiu sair do país para a Alemanha Ocidental. Kunert vive com a mulher numa pequena cidade do norte da Alemanha, Itzehoe, com quase 33 mil habitantes. A cidade lembra um set de filmagem. Um lugar que eu gostaria de conhecer. Ou morar. 

Mais tarde entendi o sentimento que as pedrinhas – a que sumiu no tempo e as outras que vieram depois – me faziam sondar, especular, cavar nos territórios esquecidos pela memória ou envoltos na bruma do tempo: pressentir que, de fato, há tão somente o tempo que vivemos e nada mais. Não dá para voltar um passo sequer, somos impelidos para um futuro indistinto, estamos imantados por um destino que nos suga para um vácuo que parece ser constituído de infinitos vácuos e o que há de tristeza e alegria, de feiura e beleza, seguem lado a lado com a gente ou até um ou dois passos à frente, mas não há como divisar o vácuo, a fronteira.

Queria muito olhar no céu de Belém o céu de Berlim sendo iluminado pelos oito mil balões brancos instalados na linha do que foi o muro. Fiquei só imaginando. Nós, esses seres estranhamente humanos que sobrevivemos a todas as contradições, ainda nos valemos da imaginação para nos sentirmos reais.

O sábado passou, nem notei que já seria domingo em Berlim, simplesmente nem me dei conta disso, pois o coração também estava ocupado com outros haveres, com outro gostares, com outras descobertas e construções mentais nesse rebuliço diário que é a vida. Eu me lembrei de alguns amigos distantes, senti saudade de outros mais perto, de amigos que chegaram recentemente e a agulha imaginária bailando em algum vinil antigo, arranhando canções de amor me fez bendizer esse sentimento que às vezes esquecemos nas gavetas, no isolamento, no medo de alimentá-lo, o que na verdade não o faz definhar e sim aumentar-lhe a fome.  Eu quero, sempre, amar, mesmo que, às vezes, não saiba como dizer ou demonstrar.

             Novos muros a derrubar. Vou catar outras pedrinhas em nome do amor com as quais possa compor novas histórias, poesias, personagens e, pelo menos no meu desejo, imortaliza-los. Ainda é possível escrever a vida. Tente.

            Agora vou colocar para rodar no vídeo um filme que está no cantinho dos que gosto de ver para matar saudade:

           

 Good bye, Lenin! (Adeus, Lenin!), de Wolfgang Becker, 2003. O filme consagrou Daniel Brühl como um dos grandes atores alemães da nova geração. Quem quiser ver pode baixar Adeus, Lenin!, em  vários sites na internet.



sábado, 1 de novembro de 2014

Como equilibristas mambembes

Berlim: um parquinho mambembe é montado ao lado da Igreja Memorial. By Ronald

  
Desperto assim, por vezes, sentindo-me inesperadamente equilibrista de uma corda bamba imaginária a nos roubar o sono quando a gente precisa muito estar dormindo e sonhando, sobressaltado como se enfrentasse o risco da queda livre, seja sob uma lona encardida ou a céu de brigadeiro, num circo onde não há rede de proteção. Essa imagem da vida como espetáculo mambembe é recorrente em mim, anos a fio, no despertar inevitável enquanto isso é possível.

Há momentos que nos arrancam do olhar a alegria, o riso, o suspiro, o suspense costurado na simplicidade com que se desenvolve a cena no seu tempo preciso, nem um segundo a mais. Devo lembrar que o equilibrista é uma atração de tirar o fôlego da plateia, mas há um desfile imperdível de outros tantos personagens depois do equilibrista, como o trapezista e seu salto mortal quádruplo, os malabares, os motociclistas no globo da morte, o atirador de facas, a dançarina sedutora de elefantes e o domador dos tigres e leões, os insubstituíveis palhaços, o comedor de espada e o engolidor de fogo, a mulher gorila ameaçando romper as grades da jaula e provocando gritinhos na mulherada, pavor nas crianças que nem percebem o doce olhar amoroso da mulher de barba ruiva apaixonada pelo anão usado como projétil de um velho canhão de guerra.

 Ultimamente tem sido assim. Não há tempestades anunciando catástrofes, passam chuvas fortes, pampeiros ligeiros, mas o céu depois se normaliza, entre nuvens decorativas e ensaio de um azul que pode ser contemplado sob a luz da hora, do calor da estação. Ainda que na minha cabeça rode um tornado. Um turbilhão de emoções que vai da calmaria do lago ao espetáculo circense.

 Hoje foi desse jeito. Tenho sono profundo, mas posso despertar com o ruído de uma barata passeado pelo quarto, caso haja um inseto de tal porte - o que já ocorreu, raríssimas vezes, mas já me deparei com essa espécie - mesmo considerando que minha pequena fortaleza fica no décimo andar e que é pouco atraente a visitas desse tipo, graças ao rigor da faxina diária comandada pelo Super_Manuel, meu assistente que é, também, DJ.

            Logo cedo fui cutucado pelo som do Messenger. Tudo porque peguei no sono e me esqueci de desligar o bendito aparato ou deixá-lo em outro canto do apartamento. Alguém me pedia desculpas por um incidente que, na verdade, foi coisa boba. Não vou entrar em detalhes. Só quero dizer que percebo estar a vida vazia desse modo simples de reconhecer que pedir desculpa não desfaz o feito, mas refaz o que podia estar irremediavelmente desfeito, esgarçado, descosturado, ter os nós perdidos, alinhavos rompidos.

            Todos nós precisamos dessa delicadeza para suportar o peso ou a insustentável leveza do mundo, do que está fora e do que trasladamos para dentro de nós, como o circo e seus personagens - e ainda tem o bilheteiro e o vendedor de guloseimas e garotos que encontram passagens secretas até à arquibancada, por astúcia ou pacto com seus diabinhos travessos.

            Gira o mundo, gira o carrossel, meus sonhos mambembes, meus pesadelos luxuriantes e a simplicidade das coisas. É, ando meio assim, entre lá e cá. Às vezes me desconheço, às vezes me perco de mim.
           
Acho que devo pedir desculpas mais vezes às pessoas no geral e agradecer, da mesma forma que agradecemos à corda que bambeia, mas não rompe e assegura que o equilibrista consiga ir de ponta a ponta, olhando do alto o picadeiro, nos ensaios diários, ou os vazios de uma plateia que nem vá gerar um borderô capaz de pagar a noite. Uma forma de exercitar a delicadeza.

Fui dormir me sentido equilibrista de um espetáculo solitário. Acordei com a sensação de ser um equilibrista prestes a despencar. Fui expatriado do sono que me acalentava, que me tirou o amargo da poesia que deixo aqui e na qual falo do tempo que passa pela gente porque não duvida do ofício. O tempo é sábio quanto a isso, sabe do seu eterno rito de passagem. Não podemos ser como ele. Somos apenas passageiros. Ele é a travessia e nós, simples atravessadores à procura de atalhos e transversais. Fazer poesia não é simples, mas gosto de me instigar. E aos poucos ir compartilhando essas saliências poéticas.

O tempo dispensa consentimento
Não precisa nos pedir passagem
E às vezes me dano por não considerar
Que isso se dá sem a menor sutileza,
Sem gentilezas, pois outra é a química

Outras são as camadas do tempo
Sem o envelhecimento das células
Ou o enrugamento inexorável da pele
Sem a despigmentação da alma
Sem o enrijecimento dos nervos

Sem o esfrangalhamento dos ossos
Ou a oxidação do pensamento
Sem a dilaceração das cordas vocais
Ou a dor da úlcera recidiva, da lágrima ácida.
Erodindo os territórios da fantasia.

Aprendi quase nada da indiferença
Como a que faz o tempo se desnudar sem medo.
Medo é próprio dos homens, não do tempo
Então brinco de inventor, faço inventários
Baseado numa espera que me exaspera

O tempo nada espera, eu sou um lapso
O tempo é inteiro e eu um pseudo fractal
 Mas se ele me escapa ao entendimento
À razão universal que ouso pensar de mim
Escorre também para o vazio inevitável.

O que ficará da minha história para o tempo
Que não privilegia a memória a definhar-se?
O que restará do amor que podia me dar liberdade
Mas que preferiu se escravizar ao tempo?
Nada. Tudo é negação à luz dos olhos do mundo.