Verão
europeu, 2006
Dias claros mais longos. Leo estava na
estação, sentado ao lado da mala, olhando o relógio da plataforma, à espera do
embarque no trem que partiria no meio da tarde ensolaradamente viva. Próxima
parada, Berlin. Ainda não havia movimento intenso na plataforma do
embarque. Ele chegou muito cedo. Hábito antigo, preferia chegar uma hora ou
pouco mais antes da partida. Na Alemanha, os trens saíam no horário se nada de
excepcional acontecesse, e, quando se aproximava a hora do embarque, formava-se
um formigueiro de gente afoita para entrar nos vagões já que o trem não ficava
muito tempo parado. Leo apreciava esse vaivém na estação Esperava por Zarah,
que conhecera numa festa em Colônia. Eles viajaram para Frankfurt am Main numa
sexta-feira e combinaram encontrar-se na estação naquele domingo. Os dois iriam
para Berlin1, onde Zarah o hospedaria por duas semanas.
Os olhos não desgrudavam do relógio e do
placar que anunciava o próximo comboio. Martelou na cabeça a mesma ansiedade,
uma quase acusação: “Cheguei muito cedo... bom, melhor assim, já pensou pegar o
trem errado?”. Paranoia de viajante. Mas já acontecera de ele reembarcar, em
Lisboa, uma brasileira que havia pegado trem errado em Paris. Ela colou em Leo
quando ouviu que ele falava português no corredor do trem com uma garota
portuguesa que morava em Marselha, uma dançarina lisboeta com alguns quilos
acima do peso que iria visitar os pais. A nervosa senhora de meia-idade
chamava-se Maria de Nazaré, era de Belém do Pará, devota da Virgem e morava no
bairro de Nazaré. Não dava para esquecer o nome e a cara de pânico da
passageira perdida. Em Lisboa, ajudou a mulher a comprar nova passagem para
Paris. Encheu a cabecinha dela com recomendações, informações sobre duração da
viagem, paradas do trem até a Gare du
Nord, seu ponto final. Que fim levou Maria de Nazaré não fazia a menor
ideia. Mas esse acontecimento, tão insignificante para ele, desatou a sensação
que todos nós vivemos assim, em permanente trânsito, ou que a presença das
coisas e dos fatos é transitória na vida de cada um de nós, viram lembranças,
simplesmente. Dia de viagem deixava-o ansioso. Como hoje. Chegou à plataforma e
foi direto checar o ponto de embarque, caçar o vagão. A cabeça do viajante
funcionava como carrossel. Será que Zarah viria? Com certeza viria... Ah, que
mania essa de pensar o pior em algumas situações! Sua taxa de pessimismo estava
mais desregulada que o colesterol. Como chegaria a Berlin sem saber onde ficar,
sem um plano emergencial, sem uma intenção? O pior é que nem fizera planos...
Pô! Ninguém o aguardando em Berlin, a não ser a cidade.
Zarah chegou em cima da hora.
Desculpou-se por não ter vindo um pouco antes. Ele nem prestou atenção ao que
ela disse. Entraram no vagão, colocaram as malas no bagageiro e acomodaram-se nas
poltronas ao lado da janela. Leo ficou na fileira do lado direito. Zarah pegou
um livro, colocou-o na mesinha central e aquietou-se na poltrona da janela do
lado esquerdo. Quando compraram as passagens em Colônia, não conseguiram
reservar poltronas contíguas. O caso agora era esperar o trem partir e tentar
trocar de assentos com algum passageiro de bom humor. O trem se reanimou, qual bicho
que rastejava até ganhar velocidade na intenção de dar o bote.
Um vagão limpo, climatizado. Tudo clean
demais e sem a atmosfera dos velhos romances policiais, dos filmes em preto
e branco, sem os mistérios das viagens que povoavam a imaginação com crimes
insolúveis ou mortes encomendadas, com assassinos disfarçados de passageiros
comuns, insuspeitos. Os trens modernos não tinham esse clima de suspense,
faltava a eles a luz mortiça do cenário, o som de fundo, das rodas arranhando
os trilhos e uma trilha sonora a eriçar os pelos dos braços. Zarah acompanhava a
saída do trem a distanciar-se da estação, olhar distraído através da janela.
A viagem deveria durar cerca de quatro horas
e meia. Estariam à noite na estação central de Berlin. Leo via a paisagem
através da janelacomo se tudo viesse contra ele, na sua direção, provocando
lembranças. A janela virou tela. Janela com vidraça sem manchas, quase um
plasma de tela plana. Do ângulo em que se encontrava, podia regular a nitidez
das imagens que começavam a se formar naquele movimento do trem, hipnótico, que
o deixava meio dormente.
Do nada, uma foto em preto e branco de
uma velha revista apareceu congelada na superfície envidraçada. Miragem.
Pressentia que não estava acordado e criava ilusões, viajava pela imaginação.
De repente, a foto se animou, um soldado andou de um lado para o outro próximo
a um cercado de arame. Um grupo de pessoas conversava ao fundo. Um dia comum na
Berlin dividida. Inesperadamente, o soldado voltou o olhar para o outro lado,
correu e pulou a cerca de arame farpado, deixando para trás o que seria, mais
tarde, o muro que faria da cidade uma ilha. Sobre a imagem foi se formando uma
legenda que não traduzia o significado do salto nem a emoção do soldado. Mas
legendas não foram feitas para traduzir emoções; eram escritas, muitas vezes,
só para enfatizar o óbvio: “Ein Volkspolizist springt in die Freiheit”. Leo
lia a legenda e ouvia a própria voz ecoando na cabeça, como se fosse o narrador
da cena. Um estado letárgico que o deixava ausente do que se passava no
interior do vagão. Relaxou, largou-se na poltrona, cabeça meio inclinada para o
lado direito. E, nesse estado de sonolência, Leo roteirizou um filme. Câmeras!
Ação!