sábado, 24 de maio de 2014

Pegue o Ita do Norte na volta pra Belém

Travessia das águas. Aqui é uma das nossas esquinas. By Ronald Junqueiro


Adiei a publicação de novo texto no meu ‘Diário da Berlinda’, no sábado, 17 de maio, por conta de uma invasão de trojan, adware, spyware e malware nas minhas terras virtuais. Evitei inclusive passar e-mails e abrir páginas indicadas por e-mails, grandes armadilhas. Mesmo com todos os cuidados de que me cerco esses ‘bugs’ são mais terríveis que praga de gafanhotos em terras do Faraó e acabei sendo atacado sem pena. Um dos ‘bichinhos nojentos’ estava escondido em um programa que havia sido indicado por antivírus, desses tantos que são oferecidos para download gratuito na internet. Nem meu blog escapou.

          As coisas andam meio que em banho-maria. O certo e confirmado é minha participação no bate-papo sobre “Jornalismo e Literatura – Entre o real e o ficcional”, que contará com a participação, também, dos jornalistas Walter Pinto e Ruth Rendeiro. Se o CD chegar a tempo, vai ser o máximo. Estou lutando contra o tempo para ter alguns exemplares, mas sem esperança.

          Por falar no CD, hoje o diretor do projeto e que também é meu parceiro, o cantor e compositor Firmo Cardoso me ligou para dizer que ouviu as gravações já masterizadas e colocou todo seu entusiasmo para atiçar minha curiosidade com relação ao resultado final.

          O romance “Berlinda – asas para o fim do mundo” conseguiu fazer com que me aproximasse da música, coisa que eu evitava já algum tempo, por pressentir que música não era minha praia, mesmo que eu estivesse cercado de música desde pequeno, desde o momento em que eu e outros endiabrados do casarão da rua dos Pariquis, onde passei minha infância e adolescência e um restinho da vida adulta, nos juntávamos para fazer estripulias num sótão improvisado na cozinha da casa, onde havia um gramofone quebrado e uma caixa cheia de discos 78 rpm. Na base da intuição e do jogo de encaixe conseguimos remontar o gramofone e colocar a velharia para funcionar. E no caixote de discos havia uma mistura de ia de Brenda Lee a Carmem Miranda, de Nelson Gonçalves e Dorival Caymmi a Nat King Cole. Unforgettable!

          Vieram então passagens relâmpagos em teatro, musical, produção de shows e de projetos musicais como o Pixinguinha e depois o Jaime Ovalle, onde trabalhei na coordenação de grandes elencos e a da turma daqui, da terrinha. Vieram as primeiras parcerias com meu querido amigo Vital Lima, compositor tão singular e dono de uma voz abençoada.

          O que tenho mesmo, sem sombra de dúvida, é o espírito de fã. Gosto de ouvir. Pesquisar. E me deixar envolver por vozes. E voz é um instrumento que tem de ter a natureza a seu favor, cordas vocais como digitais e DNA que está escrito nas estrelas, além de um toque divino para torná-las únicas e inimitáveis como a de Elis Regina, de quem sou fã desde que a ouvi pela primeira vez cantando “Pra dizer adeus”, de Torquato Neto e Edu Lobo.

          E com isso a gente vai percebendo as conexões com o que está em nossa volta. Lembro da mulher do meu irmão mais velho, o Luiz Otávio que se foi também há pouco mais de uma semana, a quem eu chama de "cunha do pau", não sei por qual motivo. Quando criança achava que ela tinha um nome feio, Dilena. Ela me ensinou a cantar uma das primeiras músicas da minha vida (por favor, não sou cantor!), "General da banda", marchinha de carnaval composta pelos parceiros Tancredo Silva, José Alcides e Sátiro de Melo, que marcou a carreira de um cantor negro brasileiro, Otávio Henrique de Oliveira, nascido no Espírito Santo, mas que fez fama em São Paulo, para onde foi ainda criança, órfão de pai e mãe. Pois é, o cara tinha talento para música. O ex-engraxate e ex-jornaleiro se revelou em um programa de calouro da Rádio Tupi, por volta de 1933. A cor lhe garantiu o apelido que virou nome artístico e o jovem Otávio Henrique de Oliveira virou o famoso Blecaute.


          Elis gravou essa música do jeito mais terno e confessional que eu já ouvi. Ela me emociona muito.




         Confesso que capitulei desde o primeiro capítulo do romance “Berlinda”. A poesia e a música vieram com toda força, na base da intimação, da pressão que nem tinha sentido, pois eu estava de coração aberto para a experiência de casar literatura com música popular que tudo fluiu: abri o livro que nascera encastelado e o fiz coletivo através das parcerias. Através da música sei que transformei compositores, músicos e intérpretes em coautores desse projeto. E isso é uma alegria indizível.

          É alegria indizível e meio esquisita, pois vai me colocar outra vez na berlinda, coisa meio angustiante pra mim que passei muito tempo na minha vida na zona de conforto dos bastidores. Vou ligar o piloto automático.

          Vou falar um pouco mais dessa versão da Feira Panamazônica do livro, aqui no ‘Diário da Berlinda’, pois estarei dos dois lados, como protagonista e como jornalista, integrando à equipe que vai tocar a comunicação do evento. A programação tem coisas muito interessantes. E aqui já vai uma dica das boas, de música:

          A noite do dia 31 de maio, no próximo sábado, às 20h30, vai rolar no Hangar o show de lançamento do CD “Waldemar Caymmi – a travessia das águas”, com a participação de Danilo Caymmi. Um encontro digno de um espetáculo no transatlântico imaginário “Ita no Norte”. Uma homenagem do tamanho do maestro e compositor paraense Waldemar Henrique e do baiano Dorival Caymmi. Imperdível!


sábado, 10 de maio de 2014

Talvez, quem sabe, um dia...

Antonia Laura, minha mãe e um dos meus tipos inesquecíveis (Álbum de família)

Quase não falo de mãe. Poucas palavras digo sobre a minha e menos do que o mínimo a respeito de mães alheias, das minhas irmãs que foram mães, das tias que provaram as dores e alegrias da maternidade e de uma geração mais nova de sobrinhas que cedo deram à luz.  Se na vida elas são tantas, imagine o que tem a história e a literatura? Um exército delas. Não escapei de criar uma mãe para o Leo, personagem central do “Berlinda – asas para o fim do mundo”. E outras mães atravessam a narrativa deixando uma marca indelével, ainda que possam estar em segundo plano. Mas mãe é um papel universal e que dá à mulher o dom de ser a grande matriz dos personagens da nossa vida e da ficção, sejam mães naturais ou mães de coração, aquelas que abriram o colo para os rebentos que perderam os colos naturais.

São tão furta-cores, abusam do mimetismo e da simplicidade que fazem das mães o ser mais divinamente comum que a humanidade já teve, que sofre as dores, desilusões, que aprendem com o peso da renúncia a grandeza que nós, pobres mortais, nem chegamos a pressentir. Melhor não revirar páginas das tragédias pessoais de cada um, coisa inesgotável.

Quando vejo toda essa movimentação comercial pelo dia das mães, um dia que para mim não provoca qualquer reação mais forte, sinto-me liberto também por não ficar aprisionado ao apelo comercial em nome de um amor que nem a propaganda nem as estratégias de marketing jamais entenderão. Minha mãe já se foi há muito tempo. Mas quando era viva, nunca nos impôs essa corrida maluca por presentes, mimos e afins para ser reverenciada com a ‘Rainha do lar’. Ela era uma mulher prática, trabalhadora e o que fazia era apenas melhorar um pouco mais o cardápio do domingo especial. Já me lembro da casa com menos irmãos e sem esses rituais das efemérides, das festas sazonais. Dos que estavam sob o mesmo teto, um ou outro tinha um emprego para garantir um trocado e ajudar no orçamento. Mas vamos deixar isso pra lá. Minha mãe, dona Antonia Laura, como gostava de ser chamada, foi um mulher invulgar e comum nas suas paixões, cuidados e desvelos maternos e que há muitos anos, pelo menos para mim, é um dos meus tipos inesquecíveis.

Quando Gal Costa gravou “O amor”, poema de Vladimir Maiakovski (na verdade um fragmento do poema intitulado ‘A propísito disto’, dedicado a Lila Brik, o grande amor do poeta) musicado por Caetano Veloso e Ney Costa Santos, é que entendi o era minha mãe, o que era mãe. E que quando as mães morrem, nós morremos também. Então pedimos a ela que nos ressuscite, pois ela abrigou a célula que nos deu vida. E é engraçado como esses momentos provocam conexões íntimas. O poema de Maiakovski evocou a imagem de minha mãe a lembrança de um dos personagens que foi marcante nas leituras de juventude, a sra. Peláguea Nilovna, do romance “A Mãe”, de Máximo Gorki. As mães que são mães por amor e vocação transitam num universo que só elas entendem. E a realidade e a ficção se alternam com uma naturalidade que nos escapa ao entendimento, por vezes. E são capazes de se transformar para defender os filhos. Elas vão à luta, como as mães argentinas da Praça Maio que marcharam contra a história oficial em à procura dos filhos desaparecidos. Ou a grande mãe que foi Zuzu Angel.

Deixo aqui o poema, na voz de Gal Cista, como se fosse cantado para dona Antonia Laura, tal uma canção de ninar. E para ninar outras mães.


Talvez, quem sabe um dia

por uma alameda do zoológico
ela também chegará
ela que também amava os animais
entrará sorridente assim como está
na foto sobre a mesa
ela é tão bonita
ela é tão bonita que na certa eles a ressuscitarão
o século trinta vencerá
o coração destroçado já
pelas mesquinharias
agora vamos alcançar tudo o que não podemos amar
na vida
com o estelar das noites inumeráveis
ressuscita-me
ainda que mais não seja
porque sou poeta
e ansiava o futuro
ressuscita-me
lutando conta as misérias do cotidiano
ressuscita-me por isso
ressuscita-me

quero acbar de viver o que me cabe
minha vida para que não mais existam amores servis

ressuscita-me
para que ninguém mais tenha de sacrificar-se
por uma casa, um buraco
ressuscita-me
para que a partir de hoje, a partir de hoje
a família se transforme e o pai seja pelo menos o
Universo
e a mãe seja no mínimo a Terra
a Terra
a Terra

segunda-feira, 5 de maio de 2014

O passado, o que é? O que virá, há de vir.

Em várias paisagens existe uma cidade presa ao passado. By Ronald Junqueiro


          Furei a agenda de publicação no Diário da Berlinda no sábado. Motivos bobos que nem preciso expor, entre eles, certa preguiça a que tenho direito uma vez ou outra. Quem não enfrenta um desanimozinho básico que atire a primeira pedra.

          Sobre a Berlinda não há novidade. Espero o dia 6 de junho para apresentar o romance na Feira do Livro, que se realiza em Belém e que traz editoras de todo o país para esse grande encontro da literatura com o público. E espero, ainda este mês, que seja concluído o CD que estava em São Paulo para masterização e esta semana deve seguir para a prenssagem.

          No mais, o verão parece dar as caras, como sábado e no domingo, quando Belém embriagou-se de luz. É incrível o poder e o fascínio que a luz provoca nas pessoas.  Passei na Estação das Docas que estava fervilhando de gente colorida, alegre, corpo mais exposto ao sol, gozando na pele a carícia de momentos assim.  Belém é uma cidade muito especial nesse sentido e fiquei imaginando como era aqui em 1888, mais de cem anos atrás.

          Por quê?

      E que nessa minha inquietação de faxineiro das minhas estantes, encontrei um livro do escritor paraense Marques de Carvalho intitulado “Hortência”, (sic) impresso na tip. Da Livraria Moderna Editora, Belém. Um romance naturalista. A edição que tenho integra a Coleção Lendo o Pará, organizada pela Fundação Tancredo Neves e Secretaria de Estado de Cultura, em 1989. A capa é pouco atraente e nem chama a atenção.  O livro é apresentado como romance naturalista, pelo professor Eidorfe Moreira. Essa publicação emplacou 25 anos e passei batido, banquei leitor desatento. Acho que ela não chegará às mãos de muito, pois o mundo literário, no que se refere aos autores, é o lado oculto da lua no quarto minguante. Ficamos distante de um mercado centralizado no sudeste. Logo, escrever para essas bandas tem que contar com dose precisa de teimosia.

          Transcrevo um trechinho desta Belém vista por Marques de Carvalho.

         “São as três horas da tarde. Bate o sol por sobre a terra, murchando nas praças os capins raquíticos e arrancando reflexos vibrantíssimos aos vidros dos lampiões enfileirados às margens das calçadas. Galos cantam monotonamente nos quintais, como distraindo a inalterável insipidez da vida animal. Um velho e magro boi preto, de largas ventas acinzentadas e flancos cheios de purulenta crosta verde, arrasta a passos cadenciados de escravo infeliz uma carroça, na qual uma pipa d’água ostenta o dorso vermelho com arcos pintados a tinta azul. E o aguadeiro vai adiante, muito corado e destilando suor dos membros, dando com a ponta da corda pequenas pancadas pelo dorso do animal e pronunciando em voz alta monossílabos intimativos de marcha. Vendedeiras de açaí passam com a gamela à cabeça, coroada pela   vasilha de barro, contendo o líquido, que elas oferecem à freguesia na sólita cantiga: - ‘E... e... eh! Açaí fresqui...i...i...nho!’

          Na oficina do Cláudio, o conhecido sapateiro da Rua das Flores, ouve-se um martelar contínuo nas solas, à cadência do qual sibilam os assovios dos operários”.

          (...)

          “Só Cláudio está calado, sem assoviar (...). Às 6 horas levantou-se o Cláudio, mandando fechar a oficina. (...)

          “Tomou o bond no canto da rua da Trindade e acendeu um cigarro.

      “Descia o veículo apressadamente. Mulheres todas penteadas e vestidas de roupas claras encostavam-se aos peitoris das janelas, inspecionando a rua com olhares felizes, na consolação do descanso que tomavam após o trabalho do dia. Crianças palradoras e alegres brincavam pelos passeios, num bulício de aves inconscientes. Numa esquina, à porta de escura taberna, um mulato maltrapilho e sujo vociferava contra o lampião, dando espetáculo à meia dúzia de moleques agrupados a poucos passos. E ao fundo, lá embaixo da rua, no meio da praça, por sobre telhados denegridos, alvejava a torre da Trindade, recortando-se no azul do céu, toda banhada pelo sol poente numas inundações prazenteiras de luz suave e imaculada. Sinos repicavam festivos, espalhando-se pelo ar.
Um sopro ardente de juvenilidade e consolo.”

          ++++

          Belém se divide entre o passado e o presente e a fatia é desigual para quem vive neste território, onde a pobreza não acabou. A orla foi ocupada sem ordenamento e o que a cidade de 1888 continuou em frente, aos olhos indiferentes dos prefeitos que por ela passaram.  Perdeu o verde da sua cobertura, pois o verde não comove os habitantes. Os quintais hoje são lembranças de infância para alguns.

          Quando eu era mais novo insistia de querer ter vivido outras épocas. Hoje não mais. Gosto de estar no meu tempo, onde há mecanismos para passear em tempos atrás. O futuro fica por conta da imaginação, que não sou muito bom para fazer planos. O que quero para os próximos dez anos? Não dá para listar e outros não se deixam invadir, fecham-se como desejos e impossibilidades, às vezes só para provocar outras para mostrar que a gente falhou na aprendizagem da vida. Resta ser feliz.

          Entre a chuva e a claridade dos verões fortes que fazem da cidade um camaleão a mudar a pele em cada mudança do tempo a história segue seus passos, seus ciclos, suas eras.
A apresentação do romance de Marques de Carvalho, numa Belém que nem se sonhava metrópole, dá a entender que havia um grande rebuliço na intelectualidade da época, o que se perdeu no tempo.

          Marques de Carvalho nasceu em 1866, há quase duzentos anos e estudou em Lisboa e Paris, mas o chamado de Belém foi mais forte. Para cá ele voltou em 1884 e iniciou sua carreira como jornalista. Em 1910, bem doente, mudou-se para Nice, na França, onde morreu.