Em várias paisagens existe uma cidade presa ao passado. By Ronald Junqueiro
Furei a agenda de publicação no Diário
da Berlinda no sábado. Motivos bobos que nem preciso expor, entre eles, certa
preguiça a que tenho direito uma vez ou outra. Quem não enfrenta um
desanimozinho básico que atire a primeira pedra.
Sobre a Berlinda não há novidade. Espero
o dia 6 de junho para apresentar o romance na Feira do Livro, que se realiza em
Belém e que traz editoras de todo o país para esse grande encontro da
literatura com o público. E espero, ainda este mês, que seja concluído o CD que
estava em São Paulo para masterização e esta semana deve seguir para a
prenssagem.
No mais, o verão parece dar as caras,
como sábado e no domingo, quando Belém embriagou-se de luz. É incrível o poder
e o fascínio que a luz provoca nas pessoas.
Passei na Estação das Docas que estava fervilhando de gente colorida,
alegre, corpo mais exposto ao sol, gozando na pele a carícia de momentos
assim. Belém é uma cidade muito especial
nesse sentido e fiquei imaginando como era aqui em 1888, mais de cem anos
atrás.
Por quê?
E que nessa minha inquietação de
faxineiro das minhas estantes, encontrei um livro do escritor paraense Marques
de Carvalho intitulado “Hortência”, (sic) impresso na tip. Da Livraria Moderna
Editora, Belém. Um romance naturalista. A edição que tenho integra a Coleção
Lendo o Pará, organizada pela Fundação Tancredo Neves e Secretaria de Estado de
Cultura, em 1989. A capa é pouco atraente e nem chama a atenção. O livro é apresentado como romance
naturalista, pelo professor Eidorfe Moreira. Essa publicação emplacou 25 anos e
passei batido, banquei leitor desatento. Acho que ela não chegará às mãos de
muito, pois o mundo literário, no que se refere aos autores, é o lado oculto da
lua no quarto minguante. Ficamos distante de um mercado centralizado no sudeste.
Logo, escrever para essas bandas tem que contar com dose precisa de teimosia.
Transcrevo um trechinho desta Belém
vista por Marques de Carvalho.
“São as três horas da tarde. Bate o sol por sobre a terra, murchando nas praças
os capins raquíticos e arrancando reflexos vibrantíssimos aos vidros dos
lampiões enfileirados às margens das calçadas. Galos cantam monotonamente nos
quintais, como distraindo a inalterável insipidez da vida animal. Um velho e
magro boi preto, de largas ventas acinzentadas e flancos cheios de purulenta
crosta verde, arrasta a passos cadenciados de escravo infeliz uma carroça, na
qual uma pipa d’água ostenta o dorso vermelho com arcos pintados a tinta azul.
E o aguadeiro vai adiante, muito corado e destilando suor dos membros, dando com
a ponta da corda pequenas pancadas pelo dorso do animal e pronunciando em voz
alta monossílabos intimativos de marcha. Vendedeiras de açaí passam com a
gamela à cabeça, coroada pela vasilha de barro, contendo o líquido, que elas
oferecem à freguesia na sólita cantiga: - ‘E... e... eh! Açaí
fresqui...i...i...nho!’
Na oficina do Cláudio, o conhecido
sapateiro da Rua das Flores, ouve-se um martelar contínuo nas solas, à cadência
do qual sibilam os assovios dos operários”.
(...)
“Só Cláudio está calado, sem assoviar (...).
Às 6 horas levantou-se o Cláudio, mandando fechar a oficina. (...)
“Tomou o bond no canto da rua da Trindade e acendeu um cigarro.
“Descia o veículo apressadamente.
Mulheres todas penteadas e vestidas de roupas claras encostavam-se aos peitoris
das janelas, inspecionando a rua com olhares felizes, na consolação do descanso
que tomavam após o trabalho do dia. Crianças palradoras e alegres brincavam
pelos passeios, num bulício de aves inconscientes. Numa esquina, à porta de
escura taberna, um mulato maltrapilho e sujo vociferava contra o lampião, dando
espetáculo à meia dúzia de moleques agrupados a poucos passos. E ao fundo, lá
embaixo da rua, no meio da praça, por sobre telhados denegridos, alvejava a
torre da Trindade, recortando-se no azul do céu, toda banhada pelo sol poente
numas inundações prazenteiras de luz suave e imaculada. Sinos repicavam
festivos, espalhando-se pelo ar.
Um sopro ardente de juvenilidade e
consolo.”
++++
Belém se divide entre o passado e o
presente e a fatia é desigual para quem vive neste território, onde a pobreza
não acabou. A orla foi ocupada sem ordenamento e o que a cidade de 1888 continuou
em frente, aos olhos indiferentes dos prefeitos que por ela passaram. Perdeu o verde da sua cobertura, pois o verde
não comove os habitantes. Os quintais hoje são lembranças de infância para
alguns.
Quando eu era mais novo insistia de
querer ter vivido outras épocas. Hoje não mais. Gosto de estar no meu tempo,
onde há mecanismos para passear em tempos atrás. O futuro fica por conta da
imaginação, que não sou muito bom para fazer planos. O que quero para os
próximos dez anos? Não dá para listar e outros não se deixam invadir, fecham-se
como desejos e impossibilidades, às vezes só para provocar outras para mostrar
que a gente falhou na aprendizagem da vida. Resta ser feliz.
Entre a chuva e a claridade dos verões
fortes que fazem da cidade um camaleão a mudar a pele em cada mudança do tempo
a história segue seus passos, seus ciclos, suas eras.
A apresentação do romance de Marques de
Carvalho, numa Belém que nem se sonhava metrópole, dá a entender que havia um
grande rebuliço na intelectualidade da época, o que se perdeu no tempo.
Marques de Carvalho nasceu em 1866, há
quase duzentos anos e estudou em Lisboa e Paris, mas o chamado de Belém foi
mais forte. Para cá ele voltou em 1884 e iniciou sua carreira como jornalista.
Em 1910, bem doente, mudou-se para Nice, na França, onde morreu.
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