Vamos passear através das cerejeiras e aproveitar a efêmera primavera feita de adeus. |
E um dia chega o dia inesperado. Ou melhor, chega o dia
esperado que se enfeita de inesperado, pois morrer é um pouco assim se a vida
seguiu seu curso natural, sem erros médicos, sem a natureza fúnebre da doença
terminal, sem suicídios planejados, sem bala perdida. Chega o dia do adeus
definitivo ou do último adeus que nem sempre se anuncia em contagem regressiva
para a gente zarpar, desatracar do cais e seguir de vez. Comecei a pensar ainda
garoto nesse ir sem vir, por ter nascido num família onde havia muita gente
mais velha ao meu olhar temporão. Foram-se os avós, tios, primos que nem
cheguei a conhecer e muita história sobre morte, esse momento cheio de
mistérios para minha cabeça de criança, que via a tristeza em volta e nem sabia
como ficar triste, mas que tinha a tristeza como obrigação porque era bonito
estar triste, era ser igual aos adultos tristes e seus lamentos, porque
sentir-se solidário e expor nem que fosse uma única lágrima era mais lindo
ainda e isso já garantia um cantinho do céu quando eu fosse dormir e não
conseguisse acordar. Mas a
tristeza passava muito rápida e eu sentia uma ponta de remorso – ou será que eu
fingia? – porque os adultos eram mais bonitos por sentirem tristeza mais tempo
do que eu. Sempre achei que a tristeza emoldurava os rostos com uma beleza
única, grave e ao mesmo tempo beatífica, dava ao olhar uma profundidade
inexplicável.
A morte povoou minha imaginação, não
mais como luto de perda recente, mas de gente que se foi. O luto virou metáfora,
figura de linguagem, assim como a tristeza é senhora, uma inesquecível Gioconda
com olhar de mater dolorosa. Cada vez mais se adensa esse território íntimo que
é limítrofe ao território dos vivos. E há uma faixa em que eles chegam a se
confundir, por onde vagam autores e personagens, mortos-vivos, zumbis, gente
que simplesmente sumiu e até anônimos convertidos em histórias que nos
assombram. Assombram de verdade, como quando eu era garoto e ouvi um dos meus
irmãos, o Aníbal, relatar a história de uma mulher que morava a algumas quadras
da casa dos meus pais que para vingar-se do abandono e da desilusão amorosa matou
os três filhos e se suicidou. A história em si não me abalou. Mas uma imagem
ficou presente até hoje. O bebê de dois
anos que jazia no berço, com a mamadeira junto da boca e o babador sujo por
gotas de leite envenenado. A defunta era uma mulher bonita, diziam os vizinhos,
mas sem sorte no casamento.
No início da semana o Aníbal morreu. A
cirurgia para colocar dois stents não garantiu a sobrevivência do coração
doente. Fui ao velório e olhando meu irmão defunto lembrei-me da história da
mãe que matou os filhos e se suicidou. Achei que depois que ele fosse sepultado
eu esqueceria essa história. Não esqueci.
As lembranças que ficaram do Aníbal
foram as que eu escolhi. Aprendi a editar minha memória. Um cara alegre,
musical, fã de Elvis Presley e de Roberto Carlos, de quem sabia as músicas de
cor e que é lembrado pela família por ter ensinado a minha irmã mais velha, a
Silvia, a dançar rock. Tomara que os dois estejam ensaiando novos passos de dança.
A Silvia foi antes dele.
A vida segue como elemento neutro, assim
a entendo. Ela pode ser tudo ou ser alguma outra coisa, menos o nada, mas
depende de tanta coisa para poder se expressar e se fazer valer a pena. Como
essas tristezas que mais parecem saltimbancos a atrair olhares, a querer
plateia, que é tão vaidosa quanto à alegria e às vezes até mais sedutora.
Esta semana foi de tristeza e nela eu
meu recolho. Penso em quem partiu, pois era a viagem inadiável. Aceito a
tristeza como hóspede e lhe faço sala sem precisar tagarelar como quando a casa
se abre para a alegria.
Tudo passa. Tudo é viagem. E mais uma
vez me valho do efêmero para perceber a velocidade do tempo, da luz, do
pensamento e extrair daí o que me serve na bagagem.
A mala ganhou peso que, confio, não vá
exceder. Arrumo em um canto os livros de Gabriel Garcia Marques. Sem permissão
atribuo laços fraternos em nome da literatura, sonho de fã. Ah, Gabo! Não
preciso alardear isso, né? Vou curtir a
tristeza dessa hora, desse adeus, mas já vislumbro atrás da porta da sala a
alegria fazendo barulho, chamando atenção e dizendo que logo vem sentar num
cantinho qualquer para me fazer companhia. Ela já anunciou que vai empilhar os
livros do seu contador de história, o imortal Gabo de Aracataca.
Penso em Aníbal e Gabriel. Tudo é efêmero. A vida dá-me a impressão de ser breve como a primavera das cerejeiras no sul do Japão.
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