Cartaz do filme de Vincente Minelli que tem James Manson interpretando Gustave Flaubert |
Para os personagens o tempo não passa.
Ainda que na história se apresentem como alguém de idade avançada e até mesmo
os mortos, para eles o tempo congela. E isso é uma realidade que os faz tão
apaixonantes. Vou considerar aqui apenas os personagens que não os dos livros
de terror, mesmo que estes tenham fã clube como Freddy Krueger e Jason. Melhor,
quero lembrar apenas dos que eu conheci em momentos especiais e pelos quais
desenvolvi afetos intransferíveis. Quer saber? Que encantadora e apaixonante é
Madame Bovary, a dama do primeiro romance de autor francês que eu li, na época
do colegial. E gostava também do nome do autor: Gustave Flaubert.
Acho que depois de Machado de Assis,
Lima Barreto e José Lins do Rego, meus primeiros autores e minhas primeiras
aventuras literárias, Gustave Flaubert foi o escritor que mais criou vida na
minha cabeça, quando eu ainda era um menino fardado de azul e branco indo para
o Colégio Paes de Carvalho, o mais prestigiado estabelecimento de educação
pública e onde vivi uma das partes mais felizes da adolescência a caminho da
fase adulta.
Lembrei-me de Emma Bovary, pois,
passeando entre as estantes de uma livraria na Avenida Paulista na quinta-feira
passada, vi na vitrine a capa de duas edições do romance, uma da LP&M
(Livro de bolso) e uma bilíngue (alemão-português) da editora Anaconda. É
inevitável que a memória se infle nestes momentos como um balão cheio de gás que,
inadvertidamente, depois nos escapa das mãos e ganha o espaço. Memória que se
parece muito com o filme ‘O Balão Vermelho’ (Le Ballon Rouge, 1956), de Albert
Lamorisse.
Quando o filme chegou por aqui já se
haviam passados alguns anos desde o seu lançamento na França, mas esse tempo
remoto numa Belém que tinha muitas salas de cinema não era barreira para a gente
acompanhar alguns grandes sucessos do telão. E para mim que tinha um irmão
projecionista, era um maná, tipo comida para o povo. A história de uma infância
triste e heroica se passava em uma Paris dos anos 50, onde o menino Pascal
(Pascal Lamorisse, filho do diretor) encontra um grande balão vermelho preso a
um poste de luz e decide soltá-lo. A partir daí começa um belo passeio pela
cidade, com roteiro que conta até com uma gangue de garotos que persegue o
menino e o balão vermelho. É uma história singela, cheia de fantasia, mas que
mexeu muito com nossos mais profundos sentimentos.
Mas voltemos a Gustave Flaubert. Devo
ter em algum canto de casa uma edição bem antiga, de uma coleção encontrada em
banca de revista que era até onde eu podia esticar os trocados escondidos no bolso
nos tempos de estudante. Tempos vasqueiros, como ouvia meu pai falar. E com que
felicidade eu trouxe o livro para casa, querendo que chegasse a noite e eu
pudesse tirar o invólucro de plástico e penetrar nas intimidades do romance que
trazia uma aura do proibido desde que Emma veio à luz. Que morressem as vacas
magras!
Emma Bovary, num
certo dia, materializou-se pra mim, numa dessas sessões corujas da televisão,
através da bela Jennifer Jones, filme em preto e branco produzido em 1949, pela
MGM e dirigido por Vincente Minelli, o pai da Liza Minelli e marido da Judy
Garland. Hoje pressinto que as conexões que construímos no universo, na nossa
passagem, acontecem, por vezes, de forma imperceptível. Penso que assim é que construímos
nossa felicidade, um dos modos. Mais um motivo para Madame Bovary ir para a
galeria dos “meus tipos inesquecíveis”. Nem por isso fiquei fã de Jennifer
Jones, atriz de talento e premiada pela academia. Na minha fantasia ela virou
definitivamente Emma Bovary e dela assim vou me lembrar, sempre.
Nem mesmo uma produção mais recente dirigida,
em 1991, por Claude Chabrol, em que a personagem foi interpretada pela
belíssima Isabelle Huppert, vai apagar da minha fantasia a Bovary_Jennifer, com
aqueles olhar de derreter corações congelados no Polo Norte.
E Emma, amor “lítero_platônico” que me
aqueceu muitas noites, instigando dores de apaixonado não correspondido, foi
paixão tão forte que me fez esquecer tudo o mais o que Gustave Flaubert
escreveu. Penso que seja um amor canino, fiel em demasia, que me está instigando
a procurar a obra do francês.
A personagem é tão arrebatadora que nem me
interessei à época pelo autor, que tinha um nome agradável e inspirador. Quando
procurei saber um pouco mais dele, a partir da pecha, a mancha de “livro
maldito” que vinha na lombada de Madame Bovary, entendi mais ainda a criatura e
o destino do criador.
No baixo calão, Gustave Flaubert levou
uma vida fodida, cumprindo o destino franciscano de grandes escritores. Vencer
o jogo imposto pelo mercado da literatura requer mais que inteligência e talento
se o negócio for ocupar o cantão dos best-sellers. Mas como estou falando de
literatura e não nos tons do cinza, não tenho dúvidas de que Gustave Flaubert
está no pódium ao lado de tantos geniais e escritores únicos como o agora imortal
Gabriel Garcia Marques.
Preciso descobrir Flaubert que Emma
deixou nas sombras ou no avesso das estantes.
Como sou voyeur de capas de livros, as
de Madame Bovary me atraem muito. E fico imaginando a grande polêmica que o
romance criou ao vir à luz. Livros não são inocentes como pode imaginar a vã
filosofia ou a inocência de um leitor. Podem ser muito perigosos. São
revolucionários. São transgressores.
Emma Bovary levou o seu criador aos
tribunais quando estava para ser publicado. Sofreu censura, cortes e Flaubert
foi processado sob a acusação de “imoralidade”. Em 1957, foi absolvido pela
Sexta Corte Correcional do Tribunal do Sena, em Paris, no dia 7 de fevereiro,
mas isso não matou a curiosidade dos que queriam saber quem era a Emma Bovary
real. E o escritor deu uma imbatível de mestre, do criador.
- Madame Bovary sou eu.
Emma Bovary, a criação de Gustave
Flaubert, se viva fosse, teria hoje 158 anos. Na verdade ela tem a eterna juventude
que a mordida de um vampiro lhe daria. E vai atravessar séculos a fio, com a
beleza personificada de Jennifer Jones.