sábado, 26 de abril de 2014

Ih, se todas fossem Emma Bovary!

Cartaz do filme de Vincente Minelli que tem James Manson interpretando Gustave Flaubert

          Para os personagens o tempo não passa. Ainda que na história se apresentem como alguém de idade avançada e até mesmo os mortos, para eles o tempo congela. E isso é uma realidade que os faz tão apaixonantes. Vou considerar aqui apenas os personagens que não os dos livros de terror, mesmo que estes tenham fã clube como Freddy Krueger e Jason. Melhor, quero lembrar apenas dos que eu conheci em momentos especiais e pelos quais desenvolvi afetos intransferíveis. Quer saber? Que encantadora e apaixonante é Madame Bovary, a dama do primeiro romance de autor francês que eu li, na época do colegial. E gostava também do nome do autor: Gustave Flaubert.

          Acho que depois de Machado de Assis, Lima Barreto e José Lins do Rego, meus primeiros autores e minhas primeiras aventuras literárias, Gustave Flaubert foi o escritor que mais criou vida na minha cabeça, quando eu ainda era um menino fardado de azul e branco indo para o Colégio Paes de Carvalho, o mais prestigiado estabelecimento de educação pública e onde vivi uma das partes mais felizes da adolescência a caminho da fase adulta.

          Lembrei-me de Emma Bovary, pois, passeando entre as estantes de uma livraria na Avenida Paulista na quinta-feira passada, vi na vitrine a capa de duas edições do romance, uma da LP&M (Livro de bolso) e uma bilíngue (alemão-português) da editora Anaconda. É inevitável que a memória se infle nestes momentos como um balão cheio de gás que, inadvertidamente, depois nos escapa das mãos e ganha o espaço. Memória que se parece muito com o filme ‘O Balão Vermelho’ (Le Ballon Rouge, 1956), de Albert Lamorisse.

          Quando o filme chegou por aqui já se haviam passados alguns anos desde o seu lançamento na França, mas esse tempo remoto numa Belém que tinha muitas salas de cinema não era barreira para a gente acompanhar alguns grandes sucessos do telão. E para mim que tinha um irmão projecionista, era um maná, tipo comida para o povo. A história de uma infância triste e heroica se passava em uma Paris dos anos 50, onde o menino Pascal (Pascal Lamorisse, filho do diretor) encontra um grande balão vermelho preso a um poste de luz e decide soltá-lo. A partir daí começa um belo passeio pela cidade, com roteiro que conta até com uma gangue de garotos que persegue o menino e o balão vermelho. É uma história singela, cheia de fantasia, mas que mexeu muito com nossos mais profundos sentimentos.

          Mas voltemos a Gustave Flaubert. Devo ter em algum canto de casa uma edição bem antiga, de uma coleção encontrada em banca de revista que era até onde eu podia esticar os trocados escondidos no bolso nos tempos de estudante. Tempos vasqueiros, como ouvia meu pai falar. E com que felicidade eu trouxe o livro para casa, querendo que chegasse a noite e eu pudesse tirar o invólucro de plástico e penetrar nas intimidades do romance que trazia uma aura do proibido desde que Emma veio à luz. Que morressem as vacas magras!

Emma Bovary, num certo dia, materializou-se pra mim, numa dessas sessões corujas da televisão, através da bela Jennifer Jones, filme em preto e branco produzido em 1949, pela MGM e dirigido por Vincente Minelli, o pai da Liza Minelli e marido da Judy Garland. Hoje pressinto que as conexões que construímos no universo, na nossa passagem, acontecem, por vezes, de forma imperceptível. Penso que assim é que construímos nossa felicidade, um dos modos. Mais um motivo para Madame Bovary ir para a galeria dos “meus tipos inesquecíveis”. Nem por isso fiquei fã de Jennifer Jones, atriz de talento e premiada pela academia. Na minha fantasia ela virou definitivamente Emma Bovary e dela assim vou me lembrar, sempre.

 Nem mesmo uma produção mais recente dirigida, em 1991, por Claude Chabrol, em que a personagem foi interpretada pela belíssima Isabelle Huppert, vai apagar da minha fantasia a Bovary_Jennifer, com aqueles olhar de derreter corações congelados no Polo Norte.

          E Emma, amor “lítero_platônico” que me aqueceu muitas noites, instigando dores de apaixonado não correspondido, foi paixão tão forte que me fez esquecer tudo o mais o que Gustave Flaubert escreveu. Penso que seja um amor canino, fiel em demasia, que me está instigando a procurar a obra do francês.

          A personagem é tão arrebatadora que nem me interessei à época pelo autor, que tinha um nome agradável e inspirador. Quando procurei saber um pouco mais dele, a partir da pecha, a mancha de “livro maldito” que vinha na lombada de Madame Bovary, entendi mais ainda a criatura e o destino do criador.

          No baixo calão, Gustave Flaubert levou uma vida fodida, cumprindo o destino franciscano de grandes escritores. Vencer o jogo imposto pelo mercado da literatura requer mais que inteligência e talento se o negócio for ocupar o cantão dos best-sellers. Mas como estou falando de literatura e não nos tons do cinza, não tenho dúvidas de que Gustave Flaubert está no pódium ao lado de tantos geniais e escritores únicos como o agora imortal Gabriel Garcia Marques.

           Preciso descobrir Flaubert que Emma deixou nas sombras ou no avesso das estantes.

          Como sou voyeur de capas de livros, as de Madame Bovary me atraem muito. E fico imaginando a grande polêmica que o romance criou ao vir à luz. Livros não são inocentes como pode imaginar a vã filosofia ou a inocência de um leitor. Podem ser muito perigosos. São revolucionários. São transgressores.

          Emma Bovary levou o seu criador aos tribunais quando estava para ser publicado. Sofreu censura, cortes e Flaubert foi processado sob a acusação de “imoralidade”. Em 1957, foi absolvido pela Sexta Corte Correcional do Tribunal do Sena, em Paris, no dia 7 de fevereiro, mas isso não matou a curiosidade dos que queriam saber quem era a Emma Bovary real. E o escritor deu uma imbatível de mestre, do criador.

          - Madame Bovary sou eu.


          Emma Bovary, a criação de Gustave Flaubert, se viva fosse, teria hoje 158 anos. Na verdade ela tem a eterna juventude que a mordida de um vampiro lhe daria. E vai atravessar séculos a fio, com a beleza personificada de Jennifer Jones.



sábado, 19 de abril de 2014

Vida boa, vida breve no jardim das cerejeiras

Vamos passear através das cerejeiras e aproveitar a efêmera primavera feita de adeus.

E um dia chega o dia inesperado. Ou melhor, chega o dia esperado que se enfeita de inesperado, pois morrer é um pouco assim se a vida seguiu seu curso natural, sem erros médicos, sem a natureza fúnebre da doença terminal, sem suicídios planejados, sem bala perdida. Chega o dia do adeus definitivo ou do último adeus que nem sempre se anuncia em contagem regressiva para a gente zarpar, desatracar do cais e seguir de vez. Comecei a pensar ainda garoto nesse ir sem vir, por ter nascido num família onde havia muita gente mais velha ao meu olhar temporão. Foram-se os avós, tios, primos que nem cheguei a conhecer e muita história sobre morte, esse momento cheio de mistérios para minha cabeça de criança, que via a tristeza em volta e nem sabia como ficar triste, mas que tinha a tristeza como obrigação porque era bonito estar triste, era ser igual aos adultos tristes e seus lamentos, porque sentir-se solidário e expor nem que fosse uma única lágrima era mais lindo ainda e isso já garantia um cantinho do céu quando eu fosse dormir e não conseguisse acordar.  Mas a tristeza passava muito rápida e eu sentia uma ponta de remorso – ou será que eu fingia? – porque os adultos eram mais bonitos por sentirem tristeza mais tempo do que eu. Sempre achei que a tristeza emoldurava os rostos com uma beleza única, grave e ao mesmo tempo beatífica, dava ao olhar uma profundidade inexplicável.

A morte povoou minha imaginação, não mais como luto de perda recente, mas de gente que se foi. O luto virou metáfora, figura de linguagem, assim como a tristeza é senhora, uma inesquecível Gioconda com olhar de mater dolorosa. Cada vez mais se adensa esse território íntimo que é limítrofe ao território dos vivos. E há uma faixa em que eles chegam a se confundir, por onde vagam autores e personagens, mortos-vivos, zumbis, gente que simplesmente sumiu e até anônimos convertidos em histórias que nos assombram. Assombram de verdade, como quando eu era garoto e ouvi um dos meus irmãos, o Aníbal, relatar a história de uma mulher que morava a algumas quadras da casa dos meus pais que para vingar-se do abandono e da desilusão amorosa matou os três filhos e se suicidou. A história em si não me abalou. Mas uma imagem ficou presente até hoje.  O bebê de dois anos que jazia no berço, com a mamadeira junto da boca e o babador sujo por gotas de leite envenenado. A defunta era uma mulher bonita, diziam os vizinhos, mas sem sorte no casamento.

No início da semana o Aníbal morreu. A cirurgia para colocar dois stents não garantiu a sobrevivência do coração doente. Fui ao velório e olhando meu irmão defunto lembrei-me da história da mãe que matou os filhos e se suicidou. Achei que depois que ele fosse sepultado eu esqueceria essa história. Não esqueci.

As lembranças que ficaram do Aníbal foram as que eu escolhi. Aprendi a editar minha memória. Um cara alegre, musical, fã de Elvis Presley e de Roberto Carlos, de quem sabia as músicas de cor e que é lembrado pela família por ter ensinado a minha irmã mais velha, a Silvia, a dançar rock. Tomara que os dois estejam ensaiando novos passos de dança. A Silvia foi antes dele.

A vida segue como elemento neutro, assim a entendo. Ela pode ser tudo ou ser alguma outra coisa, menos o nada, mas depende de tanta coisa para poder se expressar e se fazer valer a pena. Como essas tristezas que mais parecem saltimbancos a atrair olhares, a querer plateia, que é tão vaidosa quanto à alegria e às vezes até mais sedutora.

Esta semana foi de tristeza e nela eu meu recolho. Penso em quem partiu, pois era a viagem inadiável. Aceito a tristeza como hóspede e lhe faço sala sem precisar tagarelar como quando a casa se abre para a alegria.

Tudo passa. Tudo é viagem. E mais uma vez me valho do efêmero para perceber a velocidade do tempo, da luz, do pensamento e extrair daí o que me serve na bagagem.
A mala ganhou peso que, confio, não vá exceder. Arrumo em um canto os livros de Gabriel Garcia Marques. Sem permissão atribuo laços fraternos em nome da literatura, sonho de fã. Ah, Gabo! Não preciso alardear isso, né?  Vou curtir a tristeza dessa hora, desse adeus, mas já vislumbro atrás da porta da sala a alegria fazendo barulho, chamando atenção e dizendo que logo vem sentar num cantinho qualquer para me fazer companhia. Ela já anunciou que vai empilhar os livros do seu contador de história, o imortal Gabo de Aracataca.

Penso em Aníbal e Gabriel. Tudo é efêmero. A vida dá-me a impressão de ser breve como a primavera das cerejeiras no sul do Japão. 




sábado, 12 de abril de 2014

Assim é, se lhe parece

Art crime, ponto de encontro entre Berlim e Belém. Bye Ronald Junqueiro


 Minha primeira agenda no Brasil, depois de Berlim, será em junho. No dia 6, participo de um encontro que terá como tema jornalismo e literatura. E estarei na companhia de outros dois coleguinhas que lançaram livro recentemente: os jornalistas Walter Pinto, autor de "1932, a Revolução Constitucionalista de 1932 , e Ruth Rendeiro, que escreveu “Até que o câncer nos separe”. Será um dos eventos da Feira Panamazônica do Livro, promovida pela Secretaria de Estado de Cultura.

Vou aproveitar para lançar o CD com a trilha sonora que já foi lançado em Berlim, durante as duas sessões de leitura que fiz do romance “Berlinda – Asas para o fim do mundo”, no Instituto Ibero-Americano e no Instituto de Estudos Latino-americano da Universidade Livre de Berlim. Agora, a expectativa é outra e acho que a dinâmica também, pois está implícito no tema da Feira, que vamos discutir em que momento e por quais razões entramos no universo da literatura. Hoje eu penso um pouco mais sobre o que me levou a provar as dores e amores de querer ser escritor. E nem contabilizo as dores reais da falta de apoio efetivo para a cultura, que são muitas, que sobrecarregam quem escolhe o caminho das pedras e flores para expressar o que acredita ser sua arte, seu ofício.

A emoção de ter o livro pronto e seus primeiros passos não mudou, mas ganhou nuances, pois a caminhada é muito recente. Agora há um mercado a descobrir e nem sei divisar o percurso entre cá e lá. Isso vou ter de aprender.

O sentimento que me assalta tem duplo sentido: o de ser amador, por amar literatura e de ser amador por não ser um escritor com portfólio, biografia, um agente literário e por não estar no cast de uma editora. Ser escritor independente é como briga de Davi e Golias. Tenho que encontrar e saber usar uma funda, ser bom no arremesso.

Ando agoniado com o tempo que tenho para finalizar o CD. É uma loucura. Além de criar, ter que cuidar da produção é um ato insano.

Essas coisas serão resolvidas, mas vou levar algum tempo para recompor meu orçamento, pois num país em que o apoio oficial tem jeito de ação entre amigos, o tal processo criativo precisa adotar o artista se equilibrando na corda bamba.

Cair na real não é a pior coisa para sempre, mas viver o real é uma prova de duras penas. Um teste de resistência e determinação.

Nesses dias ando sem sono. Um vampirinho com insônia e encontro alguns amigos que sofrem de insônia crônica, o que não é o meu caso. Ontem encontrei a Meg Guimarães, que me inspirou muito quando eu escrevia meu livro e que foi uma das primeiras leitoras antes do romance se materializar em capa dura. Ela que padece dessa desavença com a cama e se sente também uma vampirinha.

Esse estado de coisas gerou um papo interessante do que é real. Como na música “Dentro de mim mora um anjo”, da Suely Costa e Cacaso.

Quem me vê assim cantando
Não sabe nada de mim.
Dentro de mim mora um ano
Que tem a boca pintada
Que tem as asas pintadas
Que tem as unhas pintadas
Que passa horas a fio
No espelho do toucador.
Dentro de mim mora um anjo
Que me sufoca de amor
Dentro de mim mora um anjo
Montado sobre um cavalo
Que ele sangra de esporas
Eele é meu lado de dentro
Eu sou seu lado de fora
Quem me vê assim cantando
Não sabe nada de mim
Dentro de mim  mora um anjo
Que arrasta suas medalhas
E batuca pandeiro
Que me prendeu em seus braços
Mas que é meu prisioneiro
Acho que é colombina
Acho que é bailarina
Acho que é brasileiro
Quem me vê assim cantando
Não sabe nada de mim

O que é o real? Cose è (se vi pare). À benção Luigi Pirandello. Preciso resgatar a leitura da peça “Assim é, se lhe parece”, um pequeno oráculo do real e do imaginário. Onde fica o glamour da literatura? Esse arremate fica por conta de cada um. O ponto em cruz já foi feito pela Meg que antes de cortar a linha nos dentes, dispara: “Não se pode confundir real com verdadeiro.”

sábado, 5 de abril de 2014

Bye bye José Wilker

O coração lhe pregou uma peça. E Zé seguiu em outra caravana. Seja feliz.


A primeira notícia que ouvi na manhã deste sábado foi a que tomou conta das emissoras de televisão e das redes sociais falando da morte do ator José Wilker, um brasileiro desses de dar orgulho aos artistas de um país onde a cultura vive sempre mendigando incentivos e dinheiro para, pelo menos ter a lona a cobrir-lhe o circo. É incrível como as notícias podem causar impacto profundo e sentimentos inesperados em fãs anônimos tipo eu, que me vejo meio recolhido para manifestar o meu gostar. E nem entro em mais detalhes. Enquanto eu assistia um telejornal pela manhã, com depoimentos de colegas e amigos do artista, pensava no quanto a unanimidade pode ser uma declaração de inteligência, de reconhecimento coletivo da genialidade, da excelência do artista artesão da sua arte. E tudo contradizendo a tese de Nelson Rodrigues que a gente ouve repetir à exaustão que a unanimidade é burra. E é incrível a tristeza verdadeira desse bando anônimo, com a notícia decretando a orfandade de uma enorme plateia nacional.

Inteligente, culto, forte intelectualmente, dono de um invejável humor que é bombardeado diariamente por bombardeios insanos da violência, das falsetas, das mentiras. Assim ele era e continuará sendo lembrado pelos amigos, pelos colegas e pelos mais próximos. Um brasileiro do bem, desses que nos farão falta a partir de agora. Vi num flash da memória da televisão, José Wilker mostrar-se inteiro, veio fazer o que queria fazer e aprendeu a ser feliz. E generoso. Como no depoimento da atriz Bárbara Paz, de uma geração de artistas mais novos, contar sobre o dia em que o Wilker presenteou a ela livros e recomendou-lhe “se tranque no quarto e leia”, como um bom mestre a apontar caminhos dos desvendamentos e de auto-aperfeiçoamento no tempo que cabe a cada um.

Ele será o inesquecível mágico da Caravana Holiday no filme “Bye bye Brasil”, o eterno Vadinho de “Dona Flor e seus dois maridos”, o Roque Santeiro e outros tantos personagens a quem ele deu vida... Portanto, imortal assim como são os personagens, que sobrevivem aos seus autores e intérpretes. José Wilker não deixaria por menos, agora é imortal personagem do Teatro, Cinema e Televisão Brasileiros, por onde transitou também como diretor.

Quero só registrar minha admiração cá de longe, na plateia. E mesmo assim José Wilker me parece tão perto. E me deixa triste sua ida, dessas tristezas que hão de passar, pois acho que ele foi um cara feliz e se foi feliz. Talvez nem tenha tido tempo de escolher uns óculos ou um par novo de tênis para pegar a estrada. Numa entrevista que vi hoje, sobre a vida de Wilker, ele dizia que quando deixou Juazeiro do Norte e se mudou para o Rio de Janeiro, o plano era esse, não tinha plano, sabia apenas que não voltaria.

Que autor não gostaria de ter um artista como José Wilker para encarnar seus personagens?