terça-feira, 23 de dezembro de 2014

O Demônio não quer que acreditem nele

Por onde andará Engel?


          Não dá para escapar de dezembro, é um mês inevitável. Perdoem essa conclusão bineuronial em baixo dos caracóis de louras madeixas, claro esteja. Os outros meses também o são, mas dezembro é dezembro e acabou-se a história no cu da vitória como diziam algumas velhas tias que devem estar no limbo e umas vizinhas folgazãs que jogavam um charme, nem sempre discreto charme, sobre a rapaziada do bairro que estava “no ponto”. Dezembro é foda, pois traz a sensação de que tudo terminou, de que o mundo acabou, de que o que não foi para lixo foi pra baixo do tapete...

          Mil desculpas, mas aqui já confesso que tenho bronca de gente que baba ao fazer pregação do descarte. O que é isso? Dá a impressão que a vida é um monte de copinho de plástico de cafezinho de repartição ou copo ao lado do bebedouro da sala de espera que às vezes nem água gelada tem na torneirinha indicada para a sede do sedento cliente. E pasmem! Esse é um risco que todos os nós corremos: ter cara de copo de plástico, um iplaczinho vagabundo amassado na mão do distinto ou da distinta e que se não acabar na lixeira pode ir para lugar incerto e não sabido ou entupir os bueiros da vida.
  
       Tudo é bem mais simples. Dezembro é a última folha do calendário, as últimas páginas das agendas que já bastariam para dizer: te cuida capivara que a maior façanha do Demônio é fazer que ninguém acredite nele. A referência ao Demo (não é videoclipe, pliss!) peguei no romance Shikasta, da escritora Doris Lessing, que morreu em novembro do ano passado, em Londres. Era filha de ingleses, nasceu na Pérsia e viveu muitos anos na África. Preciso ler mais livros dela, romances que fui comprando ao longo tempo, mas que fazem parte do que chamo minhas leituras avulsas. Eles estão sempre à vista e lá uma hora eu pego algum e me deixo levar.

          Você acredita em dezembro? Acha que ele fechou um ciclo? Você está enlouquecidamente fazendo lista de prioridades e promessas para o próximo ano achando que viverá o neo Renascimento? Remoendo pecados que não quer mais cometer? Dezembro é igual ao Demônio e nem se abala com o sinal da cruz. Você não precisa acreditar em dezembro, ele nem abre mão dos seus disfarces esgueirando-se entre uma tal generosidade que enche o saco de todos os Noel, Santa Claus ou Saint Nicholas ou sabe lá quem mais que se arvore a ser doador de alegrias e felicidades devidamente contabilizadas. É um mês em que os sonhos custam caro e deixam muita gente no vermelho.

           Daí que a tal generosidade também pode ser precificada. Arrisco-me a levar pedradas ao lembrar que “A esmola quando é muito, o santo desconfia”. Será? Numa terra onde há mais oratórios do que santo como o Brasil, a esmola tem beirado os milhões e bilhões de reais e ou milhões de dólares dependendo do freguês sem ter que dividir tanto pelos milagreiros. Esmola ganhou o pomposo nome de propina, de dinheiro lavado pela corrupção e pelo tráfico.

          Pois é, tempos de festa e eu aqui com essa dureza de alma. E quem vai querer ouvir uma alma descrente quando a maioria não quer nem passar ao lado dos desmancha-prazeres?

          Vou fingir que sucumbi, até porque dezembro não veio pra me deixar triste, mesmo com toda a carga de tristeza que ele esconde do outro lado do jegue que se mostra apenas num ângulo lateral. Sem falar nas coitadas das renas carregando o velhote gordo com sua montanha de presentes. É mole? Nem tecnologia e nem inovação para poupar os pobres animais do peso da carga...

          Pois bem, a semana passou e não consegui escrever no sábado e nem no domingo. Alguns compromissos irrecusáveis me tiraram de casa. Dezembro faz a mágica de resgatar gente que andava sumida ou pelo mundo. Isso é o bom da história. Mas mexe com minha crescente sociofobia.

           Nem em foto pensei para colocar no meu Diário da Berlinda, até que fui salvo por um amigo alemão que me mandou uma imagem de lá das terras de Deutschland, onde aparece uma placa com o nome Engel, um dos personagens do meu livro. É incrível como personagens ganham vida e assim aconteceu, Engel veio me visitar em companhia do amigo Gunter, dois maluquinhos, um na ficção e outro do mundo real.

            É uma coisa que começou desde que comecei a escrever. Os personagens acabam povoando nosso mundo real. E dizem coisas, deixam pistas, pensamentos, provocações como esse trecho do capítulo final de Shikasta, de Doris Lessing. Na solidão de uma cidade que está sendo construída, o personagem escreve sobre os homens, iguais ao longo das eras:


“Pobre povo do passado, pobre povo, tantos e tantos, por milhares de anos, sem saber nada, tropeçando e procurando e desejando algo diferente, mas sem saber o que lhes tinha acontecido, nem o que desejavam.”

“Não posso deixar de pensar neles, nossos ancestrais, o pobre animal-homem sempre matando e destruindo porque não podia fazer diferente.”

“E isso continuará para nós, como se estivéssemos sendo erguidos lentamente e envoltos e purificados por um vento suave e cantante que limpa nossas mentes confusas e nos protege e cura e nos alimenta com ensinamentos jamais imaginados.”

“E aqui estamos nós, todos juntos, aqui estamos...” 

domingo, 14 de dezembro de 2014

Sob as luzes de dezembro

A velha árvore de Natal voltou à sala depois de ser esquecida por muitos anos


Dezembro é um mês que nos faz, inevitavelmente, olhar para trás, não importa a distância já percorrida até aqui. Às vezes só nos damos conta disso bem tarde, mas todos nós iremos um dia nos defrontar com esse instante. Penso que comigo tudo foi muito precoce. Andei lado a lado com a tristeza e a alegria muito cedo e elas não precisaram se apresentar com a pompa dos grandes bailes ou a dor imensurável das grandes tragédias. Já faziam parte da minha natureza e posso até dizer que são quase como minhas células-tronco tal a capacidade de autorrenovação. São autorreplicantes e podem se transformar se for o caso e, na minha visão, têm fôlego de sobreviventes. E mais, são capazes de virar outra célula como uma metamorfose ambulante.

 Dezembro não é triste, eu é que brigo com uma melancolia natural que me acompanha desde cedo, mas que cede seu lugar quando lanço mão de coisas que podem ser pequenos atos como dar meu tempo a alguém, escutar uma música, ler um livro, escrever, desenhar, assistir um filme, pensar, viver minhas saudades e o direito de ser triste quando a tristeza é necessária para me despertar para a vida. Não preciso de megaeventos para achar que sou um ser privilegiado. Acredito que ao longo do tempo aprendemos a construir pequenos artifícios para transitar pela claridade, pela sombra, pela luz difusa das transições que nos acompanha no final dos ciclos. Aprendi uma dureza que se aprende na luta do rochedo contra o mar, com muita disciplina. Mas não temo mostrar minha fragilidade como coisa de fracos, pois ela é um desafio importante a duas coisas que nos tornam humanos melhores: sentimento e inteligência. O que nos fragiliza pode fortalecer nossa percepção.

Dezembro é assim, dividido entre banquetes e mesas vazias. Não é o mês em si que pode me deixar down, mas lembro de quando eu percebi que ele simbolizava solidão. Eu estava em Berlim e recebi uma carta de um amigo muito querido que morava em Stuttgart me convidando para passar as festas com a família dele, que não era bom ficar sozinho no Natal. Há muitos anos eu já nem sabia o que era passar as festas de final de ano em família, em especial depois que meus pais morreram. Algumas vezes eu estava fora de Belém, batendo perna pelo mundo, algumas vezes num plantão de redação e outras vezes, desde que saí de casa, trancado no meu apartamento, quieto e sem espírito natalino. Acho que depois que a gente perde o tal espírito natalino ele jamais será resgatado. Não falo isso em tom de lamento e, nessa perspectiva, dezembro ficou menos dramático para mim.

Dezembro, melhor deixá-lo como é senão a emenda sai pior que o soneto. Assim penso.

Dezembro e seu tecido esgarçado, roto, com alguns buracos, fiapos, com manchas de vinho maculando o branco linho da toalha bordada, trilhas de migalhas de rabanada. Dezembro da velha árvore natalina, a lembrança de um presépio que se perdeu no tempo, ecos de vozes e risos. Tudo isso se passava na minha cabeça na viagem de trem entre Berlim e Stuttgart. Cheguei à gare e meu amigo me esperava com um sorriso acolhedor. E veio a noite da ceia. Vários amigos da família passaram para visitas e troca de votos e presentes. Em mim havia alegria e uma estranheza de estranho no ninho. Lembro que ganhei uma camisa quentinha, cor de telha. Mas não havia a grande aglomeração como nas casas brasileiras, como na minha casa. Mas na verdade nada de novo, só o frio rigoroso do inverno.

 Dezembro logo se vai. Tem gosto de tanta coisa. O pior é a sensação de ausência. Hoje senti saudade do Willi Hoss, esse meu amigo alemão que já não está mais por aqui. Lembrei das nossas caminhadas trocando ideias, jogando conversa fora, saboreando a vida com a sabedoria na companhia de um homem de bem, simples.

 Dezembro me faz pensar na falta que faz essa simplicidade do ser, dos encontros descontraídos, do se dar  incondicionalmente, do não artificializar os sentimentos ou a emoção, do não trapacear, do não abusar da arrogância de se achar o centro de tudo.

 Dezembro trouxe de volta a árvore de Natal que eu não gostava mais de armar. Criou um elo com algumas lembranças que eu queria resgatar, lembranças felizes para compensar o peso de algumas perdas importantes, este ano, que me balançaram, que me tiraram do eixo. Mas há em tudo isso, também, um ritual de libertação. Dezembro passará. Eu passarei. Todos nós somos passageiros levando na bagagem o que fomos recolhendo pela vida, Diamantes ou bijuterias. O que importa? Cada um sabe o que guarda seu relicário.


domingo, 7 de dezembro de 2014

Paulo Nunes, Franciorlis Viana e Jamil Damous

Olho minha Lettera e é como se cada tecla mexesse com minhas memórias. Foi presente de uma amiga, Maria Elisa Guimarães, professora de Filosofia. Virou peça do meu museu particular, mas me acompanhou por muitos anos, até que o computador entrasse definitivamente na minha vida. Esta semana passei em duas lojas e vasculhei na internet as promoções do e-reader. Os preços despencaram e são tentadores. As coisas vão mudar no meu modo de ler, mas não vão eliminar os rituais vividos a minha vida toda no meu universo dos livros, que não perdem o encanto dos fetiches. Tanto que...


... Estarei de olho em lançamentos para os quais fui convidado, ainda que virtualmente:

 Dia 10, o escritor e poeta Paulo Nunes, lança o seu livro “Gitos – meus minicontos amazônicos”, pela editora Paka-Tatu, às seis e meia, na Fox da Dr. Moraes.

Dia 11, Franciorlis Viana apresenta seu livro “Fantasilhoso”, no IAP, ao lado da Basílica de Nazaré, às sete da noite.

No dia 20, o poeta e compositor Jamil Damous vem a Belém lançar o livro de poesia “O Rei do vento”, a partir das cinco e meia, na Praça do Artista do Centur, com um grande show que traz para o palco amigos e parceiros do autor como Nilson Chaves, Vital Lima, Lucinnha Bastos, Juliana Sininbú, Ana Clara Nassar Matos, Andréa Pinheiro, Simone Almeida, Renata de Paula, Pedrinho Cavalléro, Armando Hesketh e Paulo R.C. Guedes. Haverá letiura de poemas cm Emanuel Maros, Geraldo Salles, José Gondim, Yeyé Porto e Marina Lúcia.

          O mundo analógico traz o calor e a emoção dos encontros como nos velhos tempos, com olhares e abraços, a alegria da presença e eu ainda não consigo imaginar o lançamento de um e-book com essa energia circundante. Os convidados teriam de levar seus e-readers e na hora do autógrafo tradicional contar com algum aplicativo para ser usado via touch screen para pressionar a digital em algum ícone biométrico do aparelho. Quem sabe até uma leitura da íris! 

          O novo leitor está a caminho, mas a travessia acredito que ainda vá durar algum tempo nesses tempos de alta velocidade na mudança dos padrões tecnológicos do consumo, comportamentos e novos hábitos. Eu ainda sofro aqui ao ver montes de livros empilhados no apartamento, disputando espaços cada vez menores para ocupar. São que nem posseiros.

          No universo das novas tecnologias é fascinante saber que poderemos levar num aparelho que se ajusta na palma da mão e que pode nos acompanhar numa mochila durante um giro pelo mundo levando o equivalente à Biblioteca de Alexandria, destruída num incêndio por invasores árabes no ano de 646 d.C. Caminhamos para o mundo sem papel. As florestas viverão uma nova trégua ainda que isso não lhes garanta o desmatamento zero.

          Não verei esse dia como coisa cotidiana. Fico dividido numa saudade de um tempo que se foi e outro que virá - saudades do futuro, juro!. Virá com o desejo de ter essa nova e inovadora realidade plenamente. Acho que minha alma se queda numa séria crise de identidade. Tenho uma visão mundana dos anos 20 e 30 do século passado e a miragem de um futuro onde a única coisa analógica que gostaria de ter era o amor, qualquer maneira de amor...





sábado, 29 de novembro de 2014

Adeus, PD James!

PD James faz parte de uma saga de escritoras de romances policiais
que nos deram tipos inesquecíveis como  os detetives
 Cordélia Gray e Adam Dalgliesh criados pela escritora.

2014 parece um ano de extermínio.  No dia 27 de novembro, morreu a escritora inglesa Phyllis Dorothy James, Baronesa James de Holland Park, título concedido a ela pela Rainha Elizabeth II. PD James, como era mais conhecida, é uma das minhas escritoras preferidas no mundo das histórias policiais, um gênero que sempre povoou minha cabeça e que hoje me mostra que eu gostaria de ser um escritor de livros policiais. Mas isso será apenas um sonho, nada além disso.

PD James morreu aos 94 anos e sempre penso que a imortalidade do autor conferido pelas obras deveria ser também a do mortal. Escritores deviam ser como vampiros, viver mais de 500 anos, com juventude eterna e mente criativa para produzir o máximo que pudesse. Mas são mortais e deixam o vazio dessa ausência.

Perdemos as referências de nosso tempo, não importa se essas pessoas morem na mesma cidade que a gente, ou em Oxford, como PD James. É como se fossem parentes de convivência tão próxima que dizer adeus fica difícil.

Preciso acreditar que essa saudade é boa e que vai me fazer olhar a vida com gosto. Por hoje é só. Não sinto vontade de escrever. Aliás, há algumas ideias tomando forma e alguns textos em produção. Preciso mergulhar de novo nas águas das letras e ver o que trarei à superfície.


Adeus, PD James!

sábado, 22 de novembro de 2014

Pequena mostra em preto e branco







Durante cinco dias publiquei no Facebook fotos em preto e branco, incentivado pela fotógrafa Gysa Chris. São recortes de Belém feitos a partir da janela do meu apartamento, com exceção da foto do barco, feita na baía do Guajará. Inauguro aqui uma pequena galeria na Berlinda, onde sigo viagem colhendo novas histórias para contar depois.

sábado, 15 de novembro de 2014

Palavra e despalavra



A nudez dos anjos e dos homens concretizadas na tela nada revela além do corpo, da forma, mas é uma ode ao organismo vivo e ao mesmo tempo ao ser etéreo na composição do artista. Alguns dizem que o corpo é a casa da alma ou o seu cárcere, que não pode ser maculado para não macular a alma. Mas a alma não precisa da pele. Ela já flutua no divino líquido amniótico, onde a nudez não é castigada. A nudez todos podem ocultar sob ricas sedas e armaduras, por convenção ou punição. Mas o nu é concebido sem pecado. No mais, a contemplação e o desejo podem mudar a sentença na criação do elogio ao belo e aos homens e mulheres dizer que a nudez pode ser premiada pelas ondas da paixão, pela febre do amor, pela arte a botar beleza em nossos olhos e em inesquecíveis noites e madrugadas. Ou à luz do dia.

Esta tela é de Hostyano, um artista brasileiro, preciso conferir de que estado nordestino. Assim que souber detalhes, volto aqui para atualizar informações.

Conheci esta tela há anos, na casa de um amigo que pra mim é um espaço encantado. Atualmente nos vemos pouco, mas qualquer brecha para um encontro já me deixa imensamente feliz. Como já disse outra vez, ir vê-lo é como se vivesse uma versão do conto Música para Camaleões, de Truman Capote, um escritor que está entre os meus preferidos. Com direito a chá e bolo caseiro. Ele é muito discreto e por isso não digo seu nome, posso batizá-lo de Wolf, um desgarrado. Tem testa alta e ar nobre. Olhinhos brilhantes, buliçosos e voz que prende pelo timbre e pelos causos contados.

Fui visitá-lo na sexta-feira. 15. Arranjei um pretexto rapidinho: devolver um livro do Goethe, um diário do autor sobre sua viagem à Itália. Quando a porta de abriu, meu olhar começou a passear pelas paredes do corredor, uma galeria. Na sala, entre tanta beleza, há três telas do Waldir Sarubi que me deixam encantado. E mais não digo, por egoísmo.

Entre conversas sobre literatura – eu adoro quando me traz livros de poetas chineses e lê alguns trechos ou me deixa passear os olhos pelas páginas incríveis, com poesias traduzidas e no original, que mais parece um bordado desenhado. E a conversa desvia para lembranças e vida alheia. Nossas angústias e sonhos. Solidão e saudade. E um desfile de gente que passou por nós, desde a época em que eu pensava se o teatro a casa que eu queria habitar.

Inevitável que os mortos viessem à tona. Mas a tarde voltou-se para Manoel de Barros, o poeta mato-grossense que morreu no dia 13. O livro do Goethe me fez ver a imagem nascendo da palavra ou a palavra materializando-se em imagens. E eu encerrei a apresentação que eu ia fazem, com uma visão poética que descobri num poema de Manoel de Barros, chamado:

DESPALAVRA

Hoje eu atingi o reino das imagens, o reino da despalavra.
Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades humanas
Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidade de pássaros.
Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidade de sapo.
Daqui vem que todos os poetas podem ter qualidade de árvore.
Daqui vem que os poetas podem arborizar os pássaros.
Daqui vem que todos os poetas podem harmonizar as águas.
Daqui vem que os poetas devem aumentar o mundo com suas metáforas
Que os poetas podem pré-coisas, pré-vermes, podem pré-musgos.
Daqui vem que os poetas podem compreender o mundo sem conceitos.
Que os poetas podem refazer o mundo por imagens, por eflúvios, por afeto.

domingo, 9 de novembro de 2014

Quatro pedrinhas nos jogos da memória

Imagem BG, o Trabante (ou Trabi) famoso carro da Alemanha Oriental. Ele virou
peça de colecionador e da Ostalgie, onda de  nostalgia da antiga Berlim.


Quatro pedacinhos de pedra. Não são amuletos, mas é incrível como eles têm a vibe de Berlim, como uma grande cutucada nas minhas emoções. Não seria diferente, ainda que eles sejam souvenir do muro. A partir deste domingo, a cidade estará sob novas luzes com a festa dos 25 anos da queda do muro.  Em pensamento – e em sentimentos - estou por lá.

 É outra Berlim. Mudou. Há uma nova geração escrevendo a história desse tempo, sem o mesmo entendimento e afetos dos velhos símbolos de uma época de riqueza antes da guerra, do terror da guerra e dos anos sombrios que vieram com a divisão de fronteiras e de corações, até que veio 1989, quando o jogo mudou e desmontou o tabuleiro da guerra fria.

 Entre e idas e vindas, estive em Berlim cinco vezes, na primeira, ainda havia o muro e foi uma sensação esquisita apanhar um ônibus no centro da cidade, na famosa avenida Kudamm, e atravessar pro lado oriental a partir do Check Point Charlie. Fiz poucas fotos desse passeio, usando ainda filme colorido, em negativo. Elas se perderam em algum trajeto depois que saí da casa que era dos meus pais e fui morar só.

          Não eram fotos espetaculares, só registros de viagem, sem valor jornalístico e, acho que, nem mesmo sentimental. Eram fotos amadoras, tiradas no modo automático e algumas estavam desfocadas. O melhor arquivo ficou mesmo por conta da minha memória. E da minha bagagem de marinheiro de primeira viagem para quem tudo virava souvenir, de um postal de propaganda a um papel de bala. Até hoje guardo dois pulôveres que relutei em me desfazer.

             A primeira pedrinha que eu ganhei veio logo depois da queda do muro, era um pedacinho de concreto que de um lado tinha vestígio de tinta em verde e amarelo. Não lembro muito bem onde foi parar. Mas lembro de que durante um bom tempo eu a levava comigo para onde ia, no bolso da camisa, na calça, na mochila e me achava uma pessoa absurda por causa disso. Acho que era tentativa de compor algum personagem que poderia aparecer um dia. E apareceu. Já existia, na verdade.

             Eu o encontrei escondido atrás das páginas de uma coletânea de contos alemães. Quando li História cotidiana de uma rua berlinense, de Günter Kunert, vivi aquele instante em que a gente não sabe se o que se está sentindo tem algum sentido, se é verdadeiro ou apenas o impacto provocado pela emoção tecida no tear do autor. Mas não parei de ler e fui até o fim na mesma hora para saber o que resultaria desta provocação. Como eu previa: alegria e tristeza num única célula. A esperança e a solidão do senhor Davi Platzker, o personagem, é tocante. Entre as ruínas de Berlim no final da guerra, ele procura recompor na memória o que era a cidade, olhando um velho mapa urbano. E no meio da ruína, depois de algum tempo de contemplação, descobre que já estava na rua que procurava, a antiga rua onde morou.

 Há uma perceptível simbiose entre Herr Platzker e o escritor. Gunter nasceu em Berlim, no dia 6 de março de 1929. Tinha dez anos quando a Alemanha invadiu a Polônia clicando o botão da mais sangrenta guerra mundial. Ele foi membro do partido comunista da Alemanha Oriental, do qual foi expulso e conseguiu sair do país para a Alemanha Ocidental. Kunert vive com a mulher numa pequena cidade do norte da Alemanha, Itzehoe, com quase 33 mil habitantes. A cidade lembra um set de filmagem. Um lugar que eu gostaria de conhecer. Ou morar. 

Mais tarde entendi o sentimento que as pedrinhas – a que sumiu no tempo e as outras que vieram depois – me faziam sondar, especular, cavar nos territórios esquecidos pela memória ou envoltos na bruma do tempo: pressentir que, de fato, há tão somente o tempo que vivemos e nada mais. Não dá para voltar um passo sequer, somos impelidos para um futuro indistinto, estamos imantados por um destino que nos suga para um vácuo que parece ser constituído de infinitos vácuos e o que há de tristeza e alegria, de feiura e beleza, seguem lado a lado com a gente ou até um ou dois passos à frente, mas não há como divisar o vácuo, a fronteira.

Queria muito olhar no céu de Belém o céu de Berlim sendo iluminado pelos oito mil balões brancos instalados na linha do que foi o muro. Fiquei só imaginando. Nós, esses seres estranhamente humanos que sobrevivemos a todas as contradições, ainda nos valemos da imaginação para nos sentirmos reais.

O sábado passou, nem notei que já seria domingo em Berlim, simplesmente nem me dei conta disso, pois o coração também estava ocupado com outros haveres, com outro gostares, com outras descobertas e construções mentais nesse rebuliço diário que é a vida. Eu me lembrei de alguns amigos distantes, senti saudade de outros mais perto, de amigos que chegaram recentemente e a agulha imaginária bailando em algum vinil antigo, arranhando canções de amor me fez bendizer esse sentimento que às vezes esquecemos nas gavetas, no isolamento, no medo de alimentá-lo, o que na verdade não o faz definhar e sim aumentar-lhe a fome.  Eu quero, sempre, amar, mesmo que, às vezes, não saiba como dizer ou demonstrar.

             Novos muros a derrubar. Vou catar outras pedrinhas em nome do amor com as quais possa compor novas histórias, poesias, personagens e, pelo menos no meu desejo, imortaliza-los. Ainda é possível escrever a vida. Tente.

            Agora vou colocar para rodar no vídeo um filme que está no cantinho dos que gosto de ver para matar saudade:

           

 Good bye, Lenin! (Adeus, Lenin!), de Wolfgang Becker, 2003. O filme consagrou Daniel Brühl como um dos grandes atores alemães da nova geração. Quem quiser ver pode baixar Adeus, Lenin!, em  vários sites na internet.



sábado, 1 de novembro de 2014

Como equilibristas mambembes

Berlim: um parquinho mambembe é montado ao lado da Igreja Memorial. By Ronald

  
Desperto assim, por vezes, sentindo-me inesperadamente equilibrista de uma corda bamba imaginária a nos roubar o sono quando a gente precisa muito estar dormindo e sonhando, sobressaltado como se enfrentasse o risco da queda livre, seja sob uma lona encardida ou a céu de brigadeiro, num circo onde não há rede de proteção. Essa imagem da vida como espetáculo mambembe é recorrente em mim, anos a fio, no despertar inevitável enquanto isso é possível.

Há momentos que nos arrancam do olhar a alegria, o riso, o suspiro, o suspense costurado na simplicidade com que se desenvolve a cena no seu tempo preciso, nem um segundo a mais. Devo lembrar que o equilibrista é uma atração de tirar o fôlego da plateia, mas há um desfile imperdível de outros tantos personagens depois do equilibrista, como o trapezista e seu salto mortal quádruplo, os malabares, os motociclistas no globo da morte, o atirador de facas, a dançarina sedutora de elefantes e o domador dos tigres e leões, os insubstituíveis palhaços, o comedor de espada e o engolidor de fogo, a mulher gorila ameaçando romper as grades da jaula e provocando gritinhos na mulherada, pavor nas crianças que nem percebem o doce olhar amoroso da mulher de barba ruiva apaixonada pelo anão usado como projétil de um velho canhão de guerra.

 Ultimamente tem sido assim. Não há tempestades anunciando catástrofes, passam chuvas fortes, pampeiros ligeiros, mas o céu depois se normaliza, entre nuvens decorativas e ensaio de um azul que pode ser contemplado sob a luz da hora, do calor da estação. Ainda que na minha cabeça rode um tornado. Um turbilhão de emoções que vai da calmaria do lago ao espetáculo circense.

 Hoje foi desse jeito. Tenho sono profundo, mas posso despertar com o ruído de uma barata passeado pelo quarto, caso haja um inseto de tal porte - o que já ocorreu, raríssimas vezes, mas já me deparei com essa espécie - mesmo considerando que minha pequena fortaleza fica no décimo andar e que é pouco atraente a visitas desse tipo, graças ao rigor da faxina diária comandada pelo Super_Manuel, meu assistente que é, também, DJ.

            Logo cedo fui cutucado pelo som do Messenger. Tudo porque peguei no sono e me esqueci de desligar o bendito aparato ou deixá-lo em outro canto do apartamento. Alguém me pedia desculpas por um incidente que, na verdade, foi coisa boba. Não vou entrar em detalhes. Só quero dizer que percebo estar a vida vazia desse modo simples de reconhecer que pedir desculpa não desfaz o feito, mas refaz o que podia estar irremediavelmente desfeito, esgarçado, descosturado, ter os nós perdidos, alinhavos rompidos.

            Todos nós precisamos dessa delicadeza para suportar o peso ou a insustentável leveza do mundo, do que está fora e do que trasladamos para dentro de nós, como o circo e seus personagens - e ainda tem o bilheteiro e o vendedor de guloseimas e garotos que encontram passagens secretas até à arquibancada, por astúcia ou pacto com seus diabinhos travessos.

            Gira o mundo, gira o carrossel, meus sonhos mambembes, meus pesadelos luxuriantes e a simplicidade das coisas. É, ando meio assim, entre lá e cá. Às vezes me desconheço, às vezes me perco de mim.
           
Acho que devo pedir desculpas mais vezes às pessoas no geral e agradecer, da mesma forma que agradecemos à corda que bambeia, mas não rompe e assegura que o equilibrista consiga ir de ponta a ponta, olhando do alto o picadeiro, nos ensaios diários, ou os vazios de uma plateia que nem vá gerar um borderô capaz de pagar a noite. Uma forma de exercitar a delicadeza.

Fui dormir me sentido equilibrista de um espetáculo solitário. Acordei com a sensação de ser um equilibrista prestes a despencar. Fui expatriado do sono que me acalentava, que me tirou o amargo da poesia que deixo aqui e na qual falo do tempo que passa pela gente porque não duvida do ofício. O tempo é sábio quanto a isso, sabe do seu eterno rito de passagem. Não podemos ser como ele. Somos apenas passageiros. Ele é a travessia e nós, simples atravessadores à procura de atalhos e transversais. Fazer poesia não é simples, mas gosto de me instigar. E aos poucos ir compartilhando essas saliências poéticas.

O tempo dispensa consentimento
Não precisa nos pedir passagem
E às vezes me dano por não considerar
Que isso se dá sem a menor sutileza,
Sem gentilezas, pois outra é a química

Outras são as camadas do tempo
Sem o envelhecimento das células
Ou o enrugamento inexorável da pele
Sem a despigmentação da alma
Sem o enrijecimento dos nervos

Sem o esfrangalhamento dos ossos
Ou a oxidação do pensamento
Sem a dilaceração das cordas vocais
Ou a dor da úlcera recidiva, da lágrima ácida.
Erodindo os territórios da fantasia.

Aprendi quase nada da indiferença
Como a que faz o tempo se desnudar sem medo.
Medo é próprio dos homens, não do tempo
Então brinco de inventor, faço inventários
Baseado numa espera que me exaspera

O tempo nada espera, eu sou um lapso
O tempo é inteiro e eu um pseudo fractal
 Mas se ele me escapa ao entendimento
À razão universal que ouso pensar de mim
Escorre também para o vazio inevitável.

O que ficará da minha história para o tempo
Que não privilegia a memória a definhar-se?
O que restará do amor que podia me dar liberdade
Mas que preferiu se escravizar ao tempo?
Nada. Tudo é negação à luz dos olhos do mundo. 

sábado, 25 de outubro de 2014

Berlinda: primeiro capítulo

O tempo marcado. Viramos escravos das horas. By Ronald Junqueiro



BERLINDA 1

Belém era o fetiche urbano. Berlin, o longínquo fetiche do outro lado do oceano. Duas cidades que desembocavam no coração do viajante e escorriam para uma Atlântida soterrada que sonhava com o oxigênio. Placas da memória moviam-se e formavam bolhas de ar, buscando a superfície. Uma ou outra conseguia escapar através dos seus olhos, gota a gota, feito lágrimas, brilhantes. O viajante acompanhava a lenta procissão que cercava a berlinda desfiando histórias, ora de amor, ora de dor. E nesse vagar testemunhava a epopeia das banalidades que se mostravam muitas vezes em preto e branco. E, assim, seguia a berlinda, feita não só para padroeiros ou nobres senhores, mas também como guardiã de casos ordinários.
                                                                      

Verão europeu, 2006

Dias claros mais longos. Leo estava na estação, sentado ao lado da mala, olhando o relógio da plataforma, à espera do embarque no trem que partiria no meio da tarde ensolaradamente viva. Próxima parada, Berlin. Ainda não havia movimento intenso na plataforma do embarque. Ele chegou muito cedo. Hábito antigo, preferia chegar uma hora ou pouco mais antes da partida. Na Alemanha, os trens saíam no horário se nada de excepcional acontecesse, e, quando se aproximava a hora do embarque, formava-se um formigueiro de gente afoita para entrar nos vagões já que o trem não ficava muito tempo parado. Leo apreciava esse vaivém na estação. Esperava por Zarah, que conhecera numa festa em Colônia. Eles viajaram para Frankfurt am Main numa sexta-feira e combinaram encontrar-se na estação naquele domingo. Os dois iriam para Berlin (1), onde Zarah o hospedaria por duas semanas.

 Os olhos não desgrudavam do relógio e do placar que anunciava o próximo comboio. Martelou na cabeça a mesma ansiedade, uma quase acusação: “Cheguei muito cedo... bom, melhor assim, já pensou pegar o trem errado?”. Paranoia de viajante. Mas já acontecera de ele reembarcar, em Lisboa, uma brasileira que havia pegado trem errado em Paris. Ela colou em Leo quando ouviu que ele falava português no corredor do trem com uma garota portuguesa que morava em Marselha, uma dançarina lisboeta com alguns quilos acima do peso que iria visitar os pais. A nervosa senhora de meia-idade chamava-se Maria de Nazaré, era de Belém do Pará, devota da Virgem e morava no bairro de Nazaré. Não dava para esquecer o nome e a cara de pânico da passageira perdida. Em Lisboa, ajudou a mulher a comprar nova passagem para Paris. Encheu a cabecinha dela com recomendações, informações sobre duração da viagem, paradas do trem até a Gare du Nord, seu ponto final. Que fim levou Maria de Nazaré não fazia a menor ideia. Mas esse acontecimento, tão insignificante para ele, desatou a sensação que todos nós vivemos assim, em permanente trânsito, ou que a presença das coisas e dos fatos é transitória na vida de cada um de nós, viram lembranças, simplesmente. Dia de viagem deixava-o ansioso. Como hoje. Chegou à plataforma e foi direto checar o ponto de embarque, caçar o vagão. A cabeça do viajante funcionava como carrossel. Será que Zarah viria? Com certeza viria... Ah, que mania essa de pensar o pior em algumas situações! Sua taxa de pessimismo estava mais desregulada que o colesterol. Como chegaria a Berlin sem saber onde ficar, sem um plano emergencial, sem uma intenção? O pior é que nem fizera planos... Pô! Ninguém o aguardando em Berlin, a não ser a cidade.
 Zarah chegou em cima da hora. Desculpou-se por não ter vindo um pouco antes. Ele nem prestou atenção ao que ela disse. Entraram no vagão, colocaram as malas no bagageiro e acomodaram-se nas poltronas ao lado da janela. Leo ficou na fileira do lado direito. Zarah pegou um livro, colocou-o na mesinha central e aquietou-se na poltrona da janela do lado esquerdo. Quando compraram as passagens em Colônia, não conseguiram reservar poltronas contíguas. O caso agora era esperar o trem partir e tentar trocar de assentos com algum passageiro de bom humor. O trem se reanimou, qual bicho que rastejava até ganhar velocidade na intenção de dar o bote.

 Um vagão limpo, climatizado. Tudo clean demais e sem a atmosfera dos velhos romances policiais, dos filmes em preto e branco, sem os mistérios das viagens que povoavam a imaginação com crimes insolúveis ou mortes encomendadas, com assassinos disfarçados de passageiros comuns, insuspeitos. Os trens modernos não tinham esse clima de suspense, faltava a eles a luz mortiça do cenário, o som de fundo, das rodas arranhando os trilhos e uma trilha sonora a eriçar os pelos dos braços. Zarah acompanhava a saída do trem a distanciar-se da estação, olhar distraído através da janela.

 A viagem deveria durar cerca de quatro horas e meia. Estariam à noite na estação central de Berlin. Leo via a paisagem através da janela como se tudo viesse contra ele, na sua direção, provocando lembranças. A janela virou tela. Janela com vidraça sem manchas, quase um plasma de tela plana. Do ângulo em que se encontrava, podia regular a nitidez das imagens que começavam a se formar naquele movimento do trem, hipnótico, que o deixava meio dormente.

 Do nada, uma foto em preto e branco de uma velha revista apareceu congelada na superfície envidraçada. Miragem. Pressentia que não estava acordado e criava ilusões, viajava pela imaginação. De repente, a foto se animou, um soldado andou de um lado para o outro próximo a um cercado de arame. Um grupo de pessoas conversava ao fundo. Um dia comum na Berlin dividida. Inesperadamente, o soldado voltou o olhar para o outro lado, correu e pulou a cerca de arame farpado, deixando para trás o que seria, mais tarde, o muro que faria da cidade uma ilha. Sobre a imagem foi se formando uma legenda que não traduzia o significado do salto nem a emoção do soldado. Mas legendas não foram feitas para traduzir emoções; eram escritas, muitas vezes, só para enfatizar o óbvio: “Ein Volkspolizist springt in die Freiheit”. Leo lia a legenda e ouvia a própria voz ecoando na cabeça, como se fosse o narrador da cena. Um estado letárgico que o deixava ausente do que se passava no interior do vagão. Relaxou, largou-se na poltrona, cabeça meio inclinada para o lado direito. E, nesse estado de sonolência, Leo roteirizou um filme. Câmeras! Ação!

 — Pule, Conrad, pule!
 A Alemanha em fuga – recorrente impressão de que a Alemanha sempre fora uma pátria que fugia de si mesma para esconder-se de uma tragédia sem tamanho que manchou o mapa com respingos de sangue. Fugir. Tudo se mistura, as imagens se
perdem e se encontram no tempo.
 De repente, outra cena: numa esquina, materializa-se uma jovem correndo, uma corrida desastrada. A fuga real mimetiza-se na ficção, camufla-se.
 — Corra, Lola, corra!
 Realidade e ficção dançam valsa num grande salão espelhado e são gêmeas que se movimentam no mundo da percepção de cada um de nós. Uma hora aparece Conrad e, em outro momento, ele é Lola. Na próxima sequência, ela se transmuda para Conrad. O soldado salta para a liberdade, desafia obstáculos, barreiras, barricadas, o muro da opressão que dominou a cidade por quase 30 anos. O soldado nem sabe que liberdade é impulso. Historiadores, escritores, críticos, intelectuais, humanistas, humanoides estrategistas, revisionistas, generais, todos sabem que nem sempre dá certo planejar a liberdade, que alcançá-la envolve riscos, que isso pode ser fatal. O salto pode ser tão perigoso quanto a liberdade de expressão.
 Conrad correu sem perceber as lentes do fotógrafo que iriam eternizá-lo, mostrando também ao mundo a fragilidade dos obstáculos, dos muros erguidos em concreto e o alcance das asas abertas compartilhando a possibilidade de ser, mesmo diante do risco de ver que o sonho será derretido pelo sol. Saltadores de muros acalentam sonhos de Ícaro.
 Outro plano. Lola em cena. Corra, Lola, corra! O drama moderno vibra no corpo da jovem cortando Berlin numa corrida alucinada de 20 minutos para salvar o homem a quem ama, é uma corrida de vida e de morte. O tempo é o começo e o fim, um
lapso, um acidente, um viés da vida por onde atravessa o amor, capaz de nos fazer escalar montanha e chegar ao pico, mesmo arriscando a encontrar nada. Ou morrer.
 Estou rodopiando no meio dessas colagens imaginárias, às vezes confusas. Berlin de ontem, em preto e branco. Agosto de 1961, numa certa esquina da Ruppinerstrasse com a Bernauerstrasse. Berlin de hoje, colorida, moderna, pichada, cidade aberta. A história do soldado poderia ser contada em quantas versões quisesse qualquer diretor se a vida de Conrad fosse um roteiro cinematográfico. Imagino o que Conrad Schumann sentiria vendo a corrida de Lola para encontrar-se com Manni, seu bem-amado. Imagino Conrad de mãos dadas com a mulher, Kunigunde, deliciando-se com uma caneca de chope e um grande saco de pipocas numa sessão de cinema num drive in, vendo a disparada de Lola pelas ruas de Berlin. Na ficção, dá para voltar a fita, brincar com os cortes e montagem, reescrever roteiros e diálogos, mas é impossível viver em três tempos na vida real.
 Para Conrad, isso não é possível, ele se despede do mundo no mesmo ano em que Lola invade as telas dos cinemas mundo afora. O roteiro que o saltador da cerca de arame farpado escreve para si não antevê um final menos melancólico. A depressão que assalta Conrad deve estar povoada pelos fantasmas da divisão de Berlin, pelas vítimas do muro. Quem há de dizer que Peter Fechter, o primeiro a tombar num salto mal calculado, aos 18 anos, cheio de sonhos e coragem juvenil, não habita esse território opressivo para onde Conrad escapa?
 Na minha miragem, tudo é tão próximo como a ironia do destino que une Conrad a Kuningude, a amada que conheceu em Günzburg, cidade onde nasceu Josef Mengele, o anjo da morte, alma negra que ainda hoje assombra vítimas da guerra.
 Final da primavera. Junho, 1998. O corpo do ex-soldado balança no jardim de sua casa, em Oberemmendorf, próximo a Kipfenberg, cidadezinha com pouco mais de cinco mil habitantes, na Bavária, onde ele morava. Um corpo coberto de pólen para a cerimônia do adeus. Um corpo suspenso e imerso na estação colorida que não disfarça o luto.


O trem parou em Fulda. Leo olhou o relógio, tentando fixar o tempo. O relógio soava como uma dependência patológica ao tempo. Ali tudo tinha que ser cronometrado. A viagem já durava uma hora. Zarah não estava no vagão. A poltrona ao lado de Leo continuava desocupada. Ainda inebriado pelas imagens de Conrad e Lola, ele pensava na guerra e no seu legado para o mundo. Heranças feitas de ruínas e destruição, de ódio a vitimar outros povos em nome do poder. Sentia-se confortável nessa quietude e, contraditoriamente, entediado. Outras cenas invadiam suas lembranças. Como a Berlin sob a pele de camaleão urbano renascido não apenas nas ruínas do Tiergarten, mas no coração dos que sobreviveram. A cidade recompondo-se sobre as imagens brutais que revelaram ao mundo o odor da morte impregnando todos os cantos, vindo dos campos de concentração onde corpos se amontoavam como pilhas de madeira prontas para se transformar em fogueiras.
 Retornar à Alemanha era sonho antigo de Leo. Era mais uma viagem afetiva do que de aventuras. Carecia de uma energia titânica de quem caminhava para os 50 anos. Como o tempo passava! Mas tinha que ser no verão, que ele achava ser a cara de Berlin, muito mais que as outras estações. Recordava-se de uns dias de chuva na cidade, uma sensação que não era aprazível como as chuvas em Belém, mornas. O verão – muito quente, na verdade – era um momento especial com a luminosidade da estação em Berlin. Ali, vivera, também, um pouco da primavera que parecia com cartão postal, com o colorido intenso das flores e o verdejante das folhas. Não havia primavera na Amazônia. “Primavera, ah primavera! Estação que não é bem-vinda por todos. Isso eu acabei aprendendo. As cores de uma fotografia não são maléficas como na vida real”, ele brincava com esse jogo de impressões. Pensava que a primavera, suas cores e seus cheiros não eram bons para os olhos e o nariz de Manfred, um estudante que conhecera na primeira vez que estivera em Berlin, quando a cidade estava enjaulada entre muros.
 Manfred ficou guardado por muito tempo entre cartas que trocaram no início da amizade e que foram rareando pela força da distância entre eles até que um dia cessaram. E que, depois, se foram extraviando nas mudanças de Leo. Mesmo assim, não o esquecera completamente. Branco demais, alto demais, desengonçado demais, falante demais e bem-humorado. Nariz avermelhado demais na primavera, sofrendo com o ataque do pólen das gramíneas, das árvores, das flores. Leo sorriu, lembrando-se de Manfred e do inseparável pacote de lenço de papel de bolso. Manfred morrera num confronto entre policiais e manifestantes antifascistas e neonazistas. Uma pedra o atingira na testa, à altura do olho esquerdo, e o fez perder os sentidos. Na queda, ele bateu a cabeça no meio-fio. Os amigos tentaram reanimá-lo e conseguiram socorro. Havia o ferimento na testa provocado pela pedrada, mas o pior veio com a hemorragia interna causada pelo impacto na queda na calçada.
 Berlin era isso e muito mais. As ausências. A saudade. O fogo. As cinzas. Os escombros. Pó. Pó que nem praga. Como o pólen. “Se pólen fosse radioativo, Chernobyl usaria flores como matéria-prima para produzir armas a serem usadas nos atentados terroristas”, escrevera Manfred num cartão postal que enviara a Leo na primavera de 1986.
 Memórias, memórias, assim a humanidade construía sua história, trama de verdades e mentiras. Essa dualidade também fazia com que Leo lembrasse Manfred.
 O fiscal pediu o bilhete, Leo saiu do torpor momentâneo. O funcionário pegou a maquininha e perfurou o cartão, mais um para a coleção. Agora Leo – um viajante e suas manias – colecionava bilhetes de trem e tíquetes de metrô. Primeiro, foram os chaveiros, peças da primeira tentativa de ser colecionador de alguma coisa; depois, vieram os adesivos, bótons, selos, caixas de fósforo, postais. Perdeu o gosto por todos. Não havia uma razão arqueológica para ser fiel a essa quinquilharia nem espaço nas gavetas, além do que lhe faltava disciplina e o espírito metódico para ordenar o monte de miudezas que se ia acumulando por algum motivo difuso. Essas manias obsessivas foram se esvaziando depois de ler José Donoso. O obsceno pássaro da noite, romance do escritor chileno, era um desses livros que nos respondiam como se fossem oráculo. O que é caro para uns pode ser inútil para os outros, como mostrava a disputada herança da velha morta no asilo. A embalagem mais cobiçada que as asiladas acreditavam esconder uma peça valiosa, uma pedra preciosa, uma joia rara, guardava como relíquia apenas uma asa de xícara. Só a morta sabia o significado e o valor daquele pedaço da louça. Essas coisas são os elos de cada um com o mundo real, suas coleções de inutilidades. O que ele mais gostava de fazer, na verdade, era colecionar personagens e autores. Sempre havia algum a tirar da cartola. Essa mágica aprendera no Auto de fé, o único livro de Elias Canneti nas suas estantes, e que comprara em um sebo. Imaginava as bibliotecas como espaços habitados bem mais do que pela fileira de lombadas e títulos. A bagagem do viajante não comportaria as obras de Fernando Pessoa e todas as suas pessoas, mas poesias e personagens caberiam em qualquer cantinho da mala imaginária e povoariam as almas dos seres humanos. Que censo maluco realizaria a contagem precisa dos habitantes desse território insondável, terra das criaturas e da fantasia na cabeça de cada mortal?
 E as horas passavam. Pernas amortecidas. Ele pegou uma Der Spiegel que alguém esquecera na bolsa da poltrona em frente à sua e folheou-a sem muito interesse. E o tempo custava a passar. Zarah agora estava grudada num romance do cubano Alejo Carpentier. A cadeira ao lado de Leo estava ocupada e ele nem havia notado. Pediu licença ao passageiro vizinho para sair ao corredor e esticar as pernas. De relance, conferiu o vagão. Estava cheio. Uma família ocupava a fileira atrás de Zarah. Mãe, duas
meninas e um bebê. Um jovem de cabelos longos, louro, barba malfeita, enfiado num iPod, como se o mundo fosse outro mundo, exibia uma cara de ausência. Um casal ria e se deliciava em arrulhos de paixão, havia um jeito de namoro fresco. No início do vagão, dois senhores que ele imaginava, pela cor da pele e pelos trajes, serem indianos discutiam com o fiscal e não se entendiam. Aos poucos, ia chegando mais gente, vinda de outros compartimentos. Leo foi ao vagão-restaurante tomar um café. Zarah não quis acompanhá-lo. Voltou e cochilou mais um pouco até despertar com a mão de Zarah tocando seu ombro.
 — Leo, temos que mudar de trem. Aconteceu algum problema na estação. Você entendeu a informação no som interno?
 — Não. Ouvi só a palavra Achtung! Mas não prestei atenção. O que houve?
 — Parece que alguém cometeu suicídio. Um jovem teria se jogado nos trilhos quando o trem parava na estação.
 — Onde nós estamos?
 — Em Kassel.
 O vagão rapidamente esvaziou-se. Passageiros andavam rápido, em filas duplas, atrás de um novo vagão do trem para onde estavam sendo transferidos. A notícia dada pelo sistema de som era tão burocrática... Alguém se suicidara, e era como se o sujeito tivesse escorregado em uma casca de banana. Os trens não podiam parar, nem o tráfego ficar refém de um suicida, o trânsito tinha que fluir sem atropelos. Os horários a cumprir. A vida rodava na paranoia dos ponteiros. A vida continuava. Não para todos, evidentemente. Alguém sempre ficava para trás. Com ele não era diferente, assim pensava.
 — Vamos nos atrasar na chegada?
 — Quase nada. Para a companhia, foi apenas um incidente. Mas não vamos descer na estação central como antes. Nossa parada será Spandau.
 Spandau soou familiar. Era um nome ligado à guerra, sempre a guerra, entranhada em cada poro da história daquele povo. O bairro abrigou a prisão de nazistas e foi demolido depois da morte de Rudolf Hess, que ali viveu 20 anos e que praticamente foi, no final da vida, o único prisioneiro a ficar no local. Berlin, cidade que oferecia uma intimidade histórica, como se todos fossem testemunhas atemporais de tudo o que ali se passou. Ela refletia, que nem espelhos bem polidos, uma produção lucrativa ao alcance de todos. A guerra gerava produtos muito mais vendáveis do que a paz. As cidades, além de cenários, eram protagonistas.
 Desta vez, Leo e Zarah sentaram-se na mesma fileira, lado a lado, no novo vagão. Zarah comentou sobre a notícia do suicídio. Zarah falou que o fato logo seria esquecido. Não era a primeira vez que isso acontecia. Leo pensava no que ela dissera:
 — As tragédias nos dias de hoje são de curtíssima temporada. Tudo é muito rápido.
 Ficou em silêncio e intimamente concluiu que o suicídio acabara por ser apenas mais um evento banal que viraria manchete se fosse morte de alguma celebridade. Zarah manifestou-se angustiada com os rumos das tragédias que as pessoas anonimamente acompanhavam ou das quais eram testemunhas e de outras que se avizinhavam. Ela, como que adivinhasse os pensamentos dele, comentou:
— Ah, Leo! Para entrar na história, tem que ser catástrofe, como uma colisão ou descarrilamento de trens com dezenas de mortos e centenas de feridos.
 — Então, Zarah... e ainda assim será tragédia com tempo de validade. Em breve, será arquivo morto para dar lugar a novas tragédias.
 Muita coisa ocorre na trajetória da humanidade e as pessoas nem se dão conta sobre o que de fato aconteceu. Assim como passam ao largo de outras tantas coisas que estão próximas de si. Quem desconfiaria de que um pacato vizinho escamotearia a violência com pequenos gestos de gentileza? E as tragédias clássicas podiam ser vistas nos dias de hoje, povoadas de medeias e édipos, de páris e helenas de troia, de romeus e julietas. Os nomes próprios agora são escritos em letras minúsculas por causa da banalização dos dramas humanos. Há incontáveis tragédias aprisionadas entre quatro paredes que jamais serão conhecidas. E, muitas vezes, o sujeito sente-se pacificado diante de uma tragédia que não é a sua. Um suicida jogou-se nos trilhos. Um fato que poderia ser banal como jogar um pedaço de papel numa lixeira ou na rua. As estações permaneciam. Os passageiros iam e voltavam. Ou não. Os suicidas, estes não ficavam, não voltavam.
Berlin. Noite. Spandau. Leo sentiu o coração acelerado, cheio de uma saudade indefinida, de uma sensação noturna. Trechos à meia-luz, a baixa iluminação em algumas estações do metrô, janelas reveladas pelo clarão de um televisor ligado que se via do lado de fora. Ou a luz que vazava de escritórios ainda abertos. A solidão era passageira de muitos vagões. A voz que anunciava cada parada denunciava um entrar e sair mecânicos. De Spandau até Berlinerstrasse eram dez paradas. E veio-lhe à cabeça a estação de Pulitzbrücke, lugar de onde saíam os judeus para os campos de concentração. As estações permaneciam até hoje indiferentes a esse ir e vir, ao movimento de passageiros, o que parecia às vezes um sem destino ou o colapso. Havia tantos lugares em Berlin por onde ele nunca passeara... Leo adorava a sonoridade de alguns nomes, como Prenzlauer Berg, Moabit, Hansaviertel, Pankow, Tempelhof, Tegel, Görlitz. Desta
vez, queria ver de perto a Bernauerstrasse e o Palácio das Lágrimas que abrigou as tristezas das despedidas entre as duas cidades separadas pelo muro. A cidade tinha um lado melancólico nas horas noturnas, abaixo das sombras. E por ela passeavam fantasmas. Apesar da atmosfera cinza, lá no fundo havia uma certeza de que Berlin tinha vocação para a festa.
— Você quer comer alguma coisa? — perguntou Zarah ao saírem da estação da Berlinerstrasse. — Há um pequeno restaurante turco perto de casa.
— Vai bem um döner kepab? — propôs Leo, estalando a língua. — E uma cerveja!
 Zarah riu e Leo descobriu que ela tinha um riso bonito. Um döner kebap era como um “cachorro-quente adubado”, como se dizia em Belém. Um senhor cachorro-quente, não um hot dog magro, com uma salsicha magra, regado a catchup e mostarda. Zarah parecia mais relaxada: “Vamos degustar uma típica comida alemã da cozinha experimental da Turquia”. E os dois riram. Ela, espirituosa. Ele achava, no seu caso, que fora mais um espasmo de fome.
 Depois da parada no pequeno restaurante turco, seguiram por uma rua arborizada. Árvores de copas densas deixavam a impressão de que as calçadas não eram bem iluminadas. O silêncio enfatizava os sons. Ouviam-se os passos nas calçadas. Dos dois lados da rua, fileiras de carros eram obstáculos no meio-fio. Os moradores estacionavam onde havia uma vaga. Os prédios não possuíam garagem. Os edifícios, de cinco andares, eram construções geminadas, de arquitetura pesada e previsível. Leo pôs-se a rastrear as janelas, a alma das casas. Cortinas brancas, bordadas. Vasinhos, objetos decorativos nas sacadas.
 Uma luminária em forma de cisne flutuava na escuridão que tomava conta das janelas alinhadas. Em outra sacada, uma réplica verde da Estátua da Liberdade sobressaía atrás do balcão ocupado por plantas carregadas de folhagem e trepadeiras. As fachadas eram na cor bege e as portas dos prédios, tão previsíveis quanto as fachadas – altas, pesadas e escuras. A do edifício de Zarah era marrom. A do prédio do lado direito, verdechumbo. Uma lâmpada de baixa voltagem deixava à mostra a numeração do prédio. Numa lateral da entrada, as campainhas com a identificação das famílias. No primeiro andar, os Boscher e os Klein. No quarto andar, um dos moradores era Zarah. Apartamento dos Zimmermann.
 Os sentidos se afinaram. O hall era igual ao de outros prédios já conhecidos. Havia um enorme espelho na parede lateral esquerda. O piso era como jogo de xadrez, preto e branco. Um lance de quatro degraus levava ao único elevador, antigo, estreito, portas pantográficas, de film noir Um elevador igual aos que apareciam em velhas produções americanas de suspense e de mistério.
 Zarah mostrou o quarto que reservara para Leo. Roupa de cama, um jogo de toalhas brancas. Podia usar o que havia na sala de banho. Dois frascos de xampu usados e outras amostras grátis e papel higiênico. Na embalagem, a marca bem-humorada, Guten Morgen. Ele arrumou as coisas pessoais num armário de canto, ao lado do espelho. Pegou o papel higiênico, feito de material reciclado, e logo pensou que todas as bundas precisavam de um bom-dia a qualquer hora do dia ou da noite, aquelas bundas que sofriam de insônia ou que conviviam com hemorroidas. E, nos dias de hoje, se fossem bundas politicamente corretas usariam papel reciclado. “Para entender o que seria uma grande cagada, era preciso filosofar em alemão”. Riu sem graça de si mesmo. Confessou a grande decepção pela falta de talento para criar frases humoradamente inteligentes. Concordou que acabara de fazer uma frase idiota. E continuou a rir, demente.
 Na cozinha, Zarah passava um café fresquinho. Uau! Cheirinho bom! À mesinha redonda, alguns salames, torradas e suco de maçã. Ela serviu o café em canecas elegantes. Leo atacou o döner kebap com uma fome de mil anos. Num cantinho da mesa, um cinzeiro de metal. Zarah acendeu um cigarro que ela mesma fez.
 — É mais barato fazer o próprio cigarro — justificou-se. — Você fuma?
 — Parei há algum tempo, mas aceito um por hoje, por voltar a Berlin. — Ela enrolou mais dois cigarros. — É um prazer fatal.
 Acenderam os cigarros e a fumaça se misturou à conversa de fim de noite, entremeada por algumas banalidades. Afinam-se ao achar que as coisas banais nos roubam tempo de uma forma tão silenciosa que nem nos apercebemos dessa verdadeira tragédia cotidiana. Seria mesmo uma tragédia a vida feita de pequenas coisas?
 Zarah fez um relato de como seria sua rotina da semana e desculpou-se por não poder dar ao hóspede muita atenção. Andava atarefada demais com a mudança para outro país e com os desvios de uma nova vida à vista. Cuba era o destino. Estava otimista com a viagem. O desemprego, contas a pagar, o apartamento imenso, a falta de perspectiva, tudo isso era muita coisa para ela no momento. Queria traçar outro rumo. Essa vontade de largar as coisas para trás a deixava animada. Exigia muito, mas a enchia de coragem.
 A noite de julho era quente, abafada. Berlin estava em festa, fervilhava com a explosão da Copa do Mundo, com a invasão de gente de todo canto do planeta. Nas ruas mais para o centro, nas vizinhanças da Kudamm, e para os lados do Mitte, havia muita festa e bares cheios. E em Potsdam. Mas isso não interessava a Zarah. Nos prédios da rua onde ela morava, não se via sequer uma bandeira alemã nas sacadas. Ela deu boa-noite a Leo e disse que, no dia seguinte, ficaria fora o tempo todo.
 Na manhã subsequente, o viajante acordou tarde. Através da janela semiaberta, vinha a claridade do dia. No prédio em frente, do outro lado do jardim, deparou-se com uma janela escancarada. Viu um homem passar rapidamente envolto numa toalha. Velhas e conhecidas janelas indiscretas como as dos jardins, dos pátios dos velhos edifícios de Berlin continuavam em seus lugares. Na cozinha, sobre a mesa, uma cesta com morangos, um mapa da cidade e um bilhete de boas-vindas deixado por sua anfitriã entre os morangos. Leo foi até a janela, aspirou fundo e murmurou com gozo.
— Bom dia, Berlin!