sábado, 28 de dezembro de 2013

Passageiros da Berlinda

 
O primeiro canto. Vital Lima, parceiro de música e de vida. By Ronald Junqueiro

O tempo corre. Por mim, adiaria 2013 por uma semana, tempo suficiente para concluir as gravações em estúdio da trilha musical do meu romance. Falta apenas fechar duas músicas: “Bela cortesã”, em parceria com Albery Albuquerque, e o samba-enredo “Derruba o muro, mistura tudo e que Deus nos acuda!”, que fiz com Pedrinho Cavalléro. Tudo quem que se resolver até a próxima terça-feira. Darei notícias.

O projeto musical que veio se juntar ao livro é um vai e vem de ondas.  Uma hora me angustia, quando vejo o quanto tem pra fazer. No túnel ou na crista da onda há outras emoções como ver as canções ganharem alma na voz de cada um dos intérpretes que embarcaram nessa aventura da berlinda comigo, que acreditaram no projeto e a ele se entregaram de corpo e alma.

O romance “Berlinda – asas para o fim do mundo” me sequestrou para seu universo paralelo desde a primeira linha do primeiro capítulo escrito – e o início de tudo foi o último capítulo -, mas era um caso solitário. A coisa complicou no coletivo, quando chamei a editora para o processo de edição e sei quantas noites de sono e insônia isso me custou. Novamente, mistura de prazer e insatisfações que vou me deter mais adiante para contar. Tudo isso superado pelo sonho de ter a berlinda saindo dessa gare literária com rotas definidas e outras incertas e não sabida como aconteceu ao embarcar para o Catar e deixar a berlinda em Doha.

Fiquei encantado quando ouvi a primeira voz em estúdio, sob a batuta do Hélio Silva Ton, com seu ar de mestre zen e seu jeito calmo de conduzir as coisas. E alegria não poderia ser maior, num sábado, o que caiu no dia 14 de dezembro e que se tornou inesquecível. Não era pra menos: a primeira voz foi a do meu amigo e parceiro Vital Lima. A vida nos presenteou com uma amizade feita de música, poesia, leituras, arte e de fios resistentes ao tempo, às distâncias, às perdas, aos silêncios e às multidões.

O que dizer do Vital? Muito. Tudo porque ele é uma pessoa a quem uma fada madrinha, um mago Merlin escondido na floresta, silfos e sílfides tocaram. Um predestinado que Deus abençoou. Ainda que ele se beneficie da dúvida, o que o torna mais transparente como ser do bem. Vital Lima é dono de uma das vozes que mais amo, que me faz um bem danado, que me emociona e que me deixa acreditar que nós podemos fazer o mundo, pelo menos o mundo circundante, melhor.

No CD com a trilha musical do romance, Vital canta duas músicas que são de tempos e histórias diferentes: “Estado de espírito” e “Mistérios”. Da primeira, retirei um verso que apoia o destino da Berlinda na frase “asas para o fim do mundo” e que é a música de Leo, um dos protagonistas do romance onde transita como personagem e narrador das histórias que se passam em Berlim e Belém do Pará. Quando o Leo se materializou no romance, a música veio com ele e o que é mais incrível é que “Estado de espírito” era uma poesia que escrevi antes da queda do muro de Berlim, em 1989, e que ganhou música e foi gravada por Vital em um disco de 1991. Ela é o que chamo de “ossos” de uma escavação que fui fazendo durante o processo de escrita do meu livro e que, acredito, já era matéria subjacente para composição de Leo.

Estado de Espírito
(Vital Lima/ Ronald Junqueiro)             

Qualquer amor é possivel
Se estou disposto
Se o caminho é livre
Tanto faz ser torto

Não use meias palavras
Não importa o tempo
Só me deixe a trilha
E o cio ao vento
Ô nada me impedirá
De ser meu destino
Nem mesmo as muralhas da China
Nem o muro de Berlim
Nem bala perdida.

Nem droga de vida!

Tudo me é transparente
Minha pele é ímã.
É casca de fruta!
É tua resina,
Sou porta e janela abertas
 (Posso ser casulo)
Posso ser teu poço fundo,
Ponte da tua coragem
Para o meu mergulho
Ou tua asa
Para o fim do mundo!

Quando pensei em “Estado de espírito” me veio num flash de memória a segunda música, como que atendendo a um chamado do tema de Leo. Telefonei pro Vital e falei sobre minha intenção de resgatar essa parceria. Demorou um pouco, mas a música veio e refiz a letra. A música fala de solidão e do desejo de mudar, de escrever um novo roteiro de vida e achei que ela seria ideal para ser a trilha de Engel, outro personagem perdido na vida, solitário e sonhando com uma saída.

Mistérios
(Vital Lima/ Ronald Junqueiro)

Pouco a pouco
Vou sondar os meus mistérios
Me entregar aos meus amigos
Vou levar a sério a voz do meu coração

Pouco a pouco
Vou rasgar as minhas mágoas
Desnudar a solidão
Navegar em outras águas pra não ser em vão

É que aos poucos
Vou me dando a conhecer à outra face da moeda
E me basta me largar em pleno espaço sem temer a queda

Hoje eu sento à mesa posta
E não quero ver no espelho o que é triste
O vazio da sala à luz de vela
Ou essa falta de apetite.

E por isso
Vou sondar os meus mistérios
E os sentidos da paixão
Vou correr como um riacho para não ser em vão

Depois do Vital, vieram Simone Braga, Firmo Cardoso, Ivanna Santos, Leo Meneses e Reginaldo Viana, mas deles vou falar no próximo blog. Todos eles, pessoas de uma generosidade ímpar e com uma carreira na música que os tornou grandes artistas desse circo místico que roda o Brasil afora, com suas trupes de gente de grande talento. E o Pará é terra de gente de primeira grandeza.

A trilha sonora vem uma riqueza de sonoridades que traz a literatura para o canto popular, uma experiência que mudou minha visão de leitor, de amante da leitura e que quero compartilhar brevemente. Isso foi possível através das vozes e dos músicos que deram vida ao projeto.


A solidão do escritor foi repartida coletivamente com a música. Como pão e vinho.

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