Tudo começou neste rascunho, ideia que foi raspada da tabula rasa. E gerou 15 capas. |
O mundo da literatura reproduz tudo o
que o mundo real tem de torto ou de linha reta. Há pouco mais de duas semanas começou
a ser discutido o projeto gráfico da capa do meu livro. Quando falei a primeira
vez que queria uma capa sóbria, simples, tipo um fundo neutro e uma fonte que
lembrasse uma tipologia de grafite, jamais imaginei que qualquer alteração
mínima, como usar uma cor, um detalhe, uma fotografia e esse leque de tipos usados
por grafiteiros e artistas do art crimes nos muros cheios de desenhos, frases,
expressões e assinaturas na verdade representassem encruzilhadas abertas para
interpretações e significados a cada olhar.
Pensava muito no conceito de “tabula
rasa”, expressão latina que significa “tábua raspada”, com o mesmo sentido de “folha
de papel em branco”, que lembra a crise dos escritores diante de uma lauda onde
não conseguem colocar uma palavra ou iniciar uma frase. Fiz uns ensaios bem
amadores no photoshop para dizer ao editor que caminho eu vislumbrava para a capa,
como queria vestir o romance, criar uma embalagem.
Na Roma antiga,
as tábuas eram cobertas com fina camada de cera. Escrevia-se fazendo incisões sobre a cera com uma espécie de estilete, que eram apagadas de modo que se pudesse escrever de novo sobre a tabula rasa, quer dizer, sobre a tábua
raspada ou apagada. Paro aqui para não entrar nas questões filosóficas se formos buscar o conceito criado por Aristóteles que usou o termo “tábula rasa” como metáfora da condição da consciência de ser desprovida de
qualquer conhecimento inato.
Olhar as possibilidades de
apagar e criar tudo de novo me lembrava também a capa como um palimpsesto,
pergaminho ou papiro usado para escrita que era apagada com raspagem de pedra-pomes
ou lavagem para que o papel fosse usado novamente.
Mas depois da tábula (ou a
tela do computador) ser usada e o pergaminho servir de suporte à escrita ou ao
desenho numa versão moderna, num tablet, com suportes tecnológicos, deixam
arquivos, como se fosse camadas, que podem ser revistas sempre.
Hoje tudo isso é bem mais
fácil com as ferramentas fornecidas por programas gráficos criados para
computador. Mesmo assim não consigo deixar ver que a arte da capa tem muito do
artesanal, da mesma forma como a criação de scrapbook, colagens, recortes, letrinhas,
cores, gramaturas e estiletes, tesouras, colas. Isso me remete à escola
primária e às precárias aulas de educação artística. É preciso manter esse
espírito para mão ficar tentado a dar apenas soluções de software.
Encontrei um blog
interessante para quem quiser pensar mais sobre o tema. O designer editorial
Rubens Lima revela os sete segredos da criação de capas de livros no site “O Capista”.
Nesse mundo de designers
cada vez mais especializados em função dos produtos por eles desenvolvidos, na
área gráfica gosto da palavra capista, do profissional que veste esta capa, e
que parece profissional em extinção como se tornaram os sineiros, os remendões
(antigos sapateiros) que recuperavam as solas de sapatos furadas de tanto uso,
as costureirinhas de bairro... Muitas profissões desapareceram do mercado, como
os acendedores de lampião. Outras migraram. Os capistas do futuro serão
especializados em e-books e talvez percam o romântico título de quem encheu
estantes e bibliotecas com embalagens de aventuras, romances, filosofia,
ciências, artes e até páginas envenenadas.
Mas será que os livros como
os conhecemos serão extintos completamente? Acho que não viverei até lá.
Enquanto este tempo não
chega não renegarei minha paixão por lombadas dispostas irregularmente numa
estante, das capas de livros que a gente deixa quietos no criado mudo, sobre a
cama, espalhados pelos móveis da casa e do apartamento. Há uma mistura de
emoção e estética pensar desse modo. E mais, há o ritual de levar o livro para
aquele nosso cantinho de leitura, de dormir com o autor sem conotações
eróticas. E a saudade de personagens. E há dedicatórias. E há histórias. E
aquele cheirinho de livro novo?
Eu experimento o tablet sem
traumas e até gosto do balé do movimento do indicador pressionando ou
alternando telas, sem precisar usar saliva para virar uma página de papel e
correr o risco de ser envenenado por algum cortesão, rs.
Pois bem, nunca vivi um
momento de tamanha indecisão. Das 15 propostas de capas apresentadas, restaram
duas com duas variações em torno delas, ou seja, quatro capas. Tenho que
escolher uma até segunda-feira.
Copiei esta frase do blog do
Rubens Lima que resume bem o que é uma capa de livro:
“A capa de um livro é uma
das poucas embalagens que é parte do produto. Não é descartável e, em condições
normais, permanece conectada ao produto até o seu derradeiro fim.”
Os livros seguirão comigo.
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