sábado, 24 de agosto de 2013

Para mais do que eu

Sou aquele que busca um caminho mais largo do que eu. By Suely Nascimento
Escrever é um exercício incomparável. O jornalismo foi a grande via que descobri bem cedo, antes mesmo de enfrentar a crise da escolha profissional, como forma de buscar o que todos os reles mortais querem: não apenas realização, mas felicidade. O texto foi meu grande aliado nesta busca. A ele cheguei não apenas pela escrita autoral, mas também pela leitura. Ler e escrever constituem, a meu ver, um grande exemplo da cumplicidade dos pares, dos casamentos, das parcerias. E como a busca pela realização e pela felicidade não tem fim, eis a chama que pode alimentar os sonhos. Sonhos de vida. Mas quem disse que isso é fácil?

Não quero dizer com isso que escrever o romance foi uma sequência natural ou previsível da minha primeira escolha profissional, o jornalismo. Mas foi consequência de muitas coisas, inclusive de eu ter deixado o jornalismo em determinado momento da minha carreira em redações. Porém já deixo cair a ficha para esclarecer que essa saída das redações não tem uma importância vital para gerar autobiografia. Tenho espírito de operário, da turma dos bastidores e fotofobia para enfrentar holofotes. Mas nada que seja dramático. Ponto.

Fiquei, vamos dizer, interditado entre 2010 e 2011 por conta do romance. Havia o contrato da bolsa de criação que estabelecia prazos para concluir o projeto.

Fatos: deixei emprego por incompatibilidade e por me sentir infeliz, mas são coisas que não vêm ao caso. Eu saí no escuro, sem perspectivas, sem planos. Mas acho que isso concorreu na verdade para que eu me reconciliasse com o texto, do qual eu estava mais longe devido ao trabalho assumido que também burocratizou a minha vida pessoal.

Quando tomei conhecimento do edital fiquei titubeante, mas naquele momento muitas coisas dispararam internamente quando fiz a pergunta: por que não?

Tomar decisões nem sempre é uma coisa simples. Eu mesmo me pedi um prazo para pensar se ia embarcar nessa canoa e dias depois comecei a preencher o formulário e a escrever um conto, que era um dos requisitos. Nessa transição que começou no preenchimento do formulário de inscrição do projeto até o resultado de concessão da bolsa de literatura vivi também a sensação de estar entrando numa fria.

Que ideia maluca querer ser escritor num país em que a cultura se faz com sangue, suor e lágrima?

Gosto de desafios por entender que na vida, às vezes, somos jogados no labirinto do Minotauro. Se correr o bicho pega e se ficar o bico come, mas o que é do homem é do homem. E das mulheres, idem.

Fiz uma boa escolha, com prazo de validade: concluir o livro até julho de 2011. E, sem sombra de dúvida, foi um tempo de felicidade. O que seria depois seria. Não fiquei entre os cinco selecionados para publicar o livro pela Funarte, mas esse era o risco. E não era um risco mortal. Fiz uma pausa, voltei a trabalhar porque sobreviver é preciso, mas com a disposição de publicar o livro quando fizesse bom tempo, como na música Bom Tempo, do Chico Buarque.

Taí um vídeo de 1973, onde Chico canta acompanhado pelo quarteto MPB4. Filmete em preto e branco de um bom tempo

Um marinheiro me contou
Que a boa brisa lhe soprou
que vem aí bom tempo
O pescador me confirmou
Que o passarinho lhe cantou
Que vem aí bom tempo

Dou duro toda semana
Senão pergunte à Joana
Que não me deixa mentir
Mas finalmente é domingo
Naturalmente, me vingo
Eu vou me espalhar por aí

No compasso do samba
Eu disfarço o cansaço
Joana debaixo do braço
Carregadinha de amor
Vou que vou

Pela estrada que dá numa praia dourada
Que dá num tal de fazer nada
Como a natureza mandou
Vou

Lá no alto
Sol quente me leva no salto
Pro lado contrário do asfalto
Pro lado contrário da dor

Um marinheiro me contou
Que a boa brisa lhe soprou
que vem aí bom tempo
O pescador me confirmou
Que o passarinho lhe cantou
Que vem aí bom tempo
Ando cansado da lida
Preocupada, corrida, surrada, batida
Dos dias meus
Mas uma vez na vida
Eu vou viver a vida
Que eu pedi a Deus

O livro não me dava tempo de ler outros autores como antes e terminei o ano de 2010 com apenas três livros lidos, digo aquela leitura pessoal, de ficar refestelado no sofá, deixando o mundo correr lá fora sem com ele nos importarmos. Mas li outras coisas pedidas pelo romance que eu começara a escrever, com uma grande carga de ansiedade, buscando referência em texto de escritores alemães, revistas, poesia e outras tantas leituras de imersão, além do monte de anotações pessoais que fui desencavando de gavetas e caixas.

Entre os autores que descobri, um deles me provocou emoções intensas: o berlinense Günter Kunert, nascido em 1929, que viveu a adolescência na Berlin destruída na Segunda Guerra Mundial. Filho de mãe judia, foi proibido pelas leis nazistas de ascender à escola secundária depois de concluir os estudos na escola primária.  Ele vive com a esposa no extremo norte da Alemanha e se dedica exclusivamente à literatura. Tem mais de 100 livros publicados.

Um sobrevivente.

Tão encantado fiquei com um conto de Kunert publicado numa antologia de autores alemães do século XX que não resisti em sequestra-lhe um personagem para a berlinda num dos capítulos do livro. O conto é “História cotidiana de uma rua berlinense”, do livro “Escombros e caprichos”, da editora L&PM, organizado por Rolf G. Renner e Marcelo Backes.

Um pouco mais sobre ele pode ser lido nesta página da Deutsche Welle, em português. Siga o link “Günter Kunert e a certeza da catástrofe”.

Deixo um poema dele que ficou sempre perto de mim enquanto eu construía o meu romance, juntamente com outros poemas que gosto de ler como se fossem oração. O poema é “Para mais do que eu”.

Sou aquele que busca
Um caminho
Para tudo o que é mais
Do que
Metabolismo
Circulação sanguínea
Alimentação
Decomposição das células.
Sou aquele que busca
Um caminho
Que é mais largo
Do que eu.
Não demasiado estreito.
Não a via-de-um-homem-só.
Mas tampouco
A poeirenta estrada
Mil vezes percorrida.
Sou aquele que busca
Um caminho
Um caminho para mais
Do que eu

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