sábado, 10 de agosto de 2013

No mundo paralelo

Kreuzberg (Berlim). Lugar que inspirou personagens. By Ronald Junqueiro.
Voltamos aos personagens. Desde o início eu sabia que criar os personagens do livro me levaria algumas noites de sono, pois em “Berlinda – asas para o fim do mundo” são muitos. A história percorre uma linha do tempo que vai mais ou menos de 1983, antes da queda do muro e depois salta para 1991 e 1992 e só vai ser retomada em 2006. Na primeira versão, o livro surgiu como um diário, quase impressões de viagem, mas a narrativa tomou outro rumo quando Leo, o personagem principal, começou a conduzir a berlinda que abre cada um dos vinte capítulos. E o Leo acabou por tornar-se meu cúmplice para escalar o elenco da história, vamos dizer assim. O meu caminho foi esse: fiz um pacto com o personagem e com isso fui eliminando os habitantes desse território ficcional, mas não de forma arbitrária. Na verdade, Leo me ajudou a planejar a narrativa.

Algumas decisões foram difíceis. Como, por exemplo, eliminar histórias que não faziam parte desta geografia pensada para a narrativa centralizada na banda de Berlim. Frankfurt é o único desvio, pois serviu como corredor de entrada e saída para a Alemanha. Foi no diálogo com Leo, o personagem que construí para ser o elo no romance, que os outros personagens foram ganhando vida e sentido. Mas não estabeleci quantos personagens eu levaria nessa aventura literária, não era minha preocupação.

Mas o número de personagens que irão atuar no livro define a coreografia e os atos, pois literatura traz esses componentes ou esse entendimento da dança, do teatro, da ópera, do roteiro do cinema. E isso pede um planejamento. Todas essas possibilidades se realizam em diálogos ou descrições, na participação do narrador na arquitetura de um capítulo, cortes e recortes nas histórias. Quem escreve estabelece o ritmo da narrativa e precisa estar afinado com essa dinâmica. Sempre tive a impressão de estar vivendo num universo paralelo e, nele, os personagens criam vida. Essa é uma experiência pessoal e intransferível.

O barato de escrever é dar visualidade à escrita e isso pode encantar qualquer um que resolva aventurar-se na trilha do texto. Essa ideia pode ser ilustrada, por exemplo, pelo telão, a página em banco do cinema preenchida pela projeção. Um filme que para mim traduz melhor o que tento dizer dessa sensação é ‘A rosa púrpura do Cairo’.

No filme, é como se a tela substituísse as páginas do romance para a dimensão onírica vivida pela bela Cecília interpretada por Mia Farrow. Há uma linha da fantasia que separa o espectador e o telão, como se ele fosse o leitor diante das páginas de um livro. E o enredo é muito simples: o casamento infeliz de uma garçonete e um marido bêbado durante a grande depressão econômica americana iniciada em 1929 e que se estendeu até a Segunda Guerra Mundial, considerada o mais longo e pior período da crise econômica do século XX.

A genialidade de Woody Allen deu um sopro de vida ao script, indicado para vários prêmios de roteiro original à época (1985). Clique aqui.

Não vamos esquecer que cinema e literatura são duas linguagens e que são produções distintas. O cinema tem uma natureza coletiva, o livro é feito por uma alma solitária chamado escritor. Mas há muitos elos entre as duas coisas e uma delas o poder de sedução que anima seus personagens, a magia e a provocação com que eles podem tocar nossas emoções e sentimentos.

Recentemente li o romance ‘Por favor, cuide da mamãe’, da escritora sul-coreana Kyung-Sook Shin, que foi uma espécie de reatamento com a literatura asiática da qual eu havia me desviado há muitos anos. Saiu no Brasil pela editora Intrínseca. É um livro tão cinematográfico que sempre me levava para a aldeia pobre da personagem principal, a Senhora Park So-nyo, que era invisível e onipresente, e para Seul e suas metamorfoses de metrópole. É uma história de família narrada de forma dura e delicada. Não tem nada de piegas como aquelas histórias de famílias comportadas de seriados de televisão dos anos 1960. E a forma da narrativa é interessante. Para ilustrar melhor o que quero dizer, eis um trecho do livro que conta a história do desaparecimento da mãe numa estação de trem de Seul e que aos poucos vai sendo construída pelas lembranças dos filhos e do marido.
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“Faz uma semana que Mamãe sumiu.

Reunida na casa do seu irmão mais velho, Hyong-chol, a família troca ideias. Você decide preparar panfletos e distribuí-los onde Mamãe foi vista pela última vez. A primeira coisa a fazer, todos concordam, é um panfleto. Obviamente, um panfleto é um recurso antiquado para a situação, mas não há muito que a família da pessoa desaparecida possa fazer, e a pessoa desaparecida é ninguém menos que a sua mãe.
 (...)
Seu irmão mais novo, dono de uma loja on-line de roupas, diz que postou na internet que sua mãe sumiu, descreveu o local onde foi vista pela última vez, adicionou sua foto e pediu para que as pessoas entrassem em contato com a família caso a vissem.
(...)
Hyong-chol diz que você é quem deve redigir o panfleto, já que seu trabalho é escrever. Você fica vermelha, como se tivesse sido pega fazendo algo que não devia. Não tem certeza se suas palavras ajudariam a encontrar Mamãe.
(...)
Nome: Park So-nyo
Data de nascimento: 24 de julho de 1938 (69 anos)
Aspecto físico: baixa, cabelos grisalhos com permanente, maçãs de rosto salientes, quando desapareceu vestia uma blusa azul-celeste, casaco branco e saia bege pregueada.
Vista pela última vez na estação de metrô de Seul”.
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Em três páginas a autora deflagra o que virá em seguida: até o último capítulo, a busca pela mãe esquecida numa estação de metrô. É um livro de poucos personagens, mas a gente tem ideia de multidão por imaginar o país onde a história é narrada. Os contrastes se encarregam de nos dar essa impressão no contraponto que a autora faz entre a zona rural e a megametrópole. Além do cenário, o livro talha muito bem os personagens para que o leitor componha cada um na sua imaginação.

O livro é dividido em cinco capítulos que misturam narradores e narrativas e uma coisa que me intrigava sempre era saber para quem a história era contada por ser tão intimista. Uma hora lembra diário, outras o confessional e há momentos em que não se sabe para quem a história está sendo contada. Pode ser um pouco confuso, mas você acaba resolvendo a cor da rosa e desde logo sabe que ela não é do Cairo. É uma rosa da Coreia do Sul.

Gosto desta opinião sobre o livro "Por favor, cuide de mamãe" que li no r.izze.nhas, um blog que encontrei por aí, googleando na internet.

Livros também podem ser fontes originais de scripts, palavra reduzida do inglês manuscript (pt. Escrito à mão). Siga seu impulso e mãos à obra. Se o tesão de escrever é grande, não adie muito o momento de embarcar nessa viagem.

A capa do livro é atraente e capas são motivos que já me fizeram levar o livro à primeira vista. Lá atrás, eu sonhei um dia ser capista. Mas são desses sonhos que servem apenas como fitinhas que se perdem no tempo penduradas à árvore dos desejos. O tempo mesmo resolve.

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