sábado, 31 de agosto de 2013
sábado, 24 de agosto de 2013
Para mais do que eu
Sou aquele que busca um caminho mais largo do que eu. By Suely Nascimento |
Escrever é um exercício incomparável. O jornalismo foi a
grande via que descobri bem cedo, antes mesmo de enfrentar a crise da escolha
profissional, como forma de buscar o que todos os reles mortais querem: não
apenas realização, mas felicidade. O texto foi meu grande aliado nesta busca. A ele cheguei não apenas pela escrita autoral, mas também pela leitura.
Ler e escrever constituem, a meu ver, um grande exemplo da
cumplicidade dos pares, dos casamentos, das parcerias. E como a busca pela realização e pela
felicidade não tem fim, eis a chama que pode alimentar os sonhos. Sonhos de
vida. Mas quem disse que isso é fácil?
Não quero dizer com isso que escrever o romance foi uma sequência natural ou previsível da minha primeira escolha profissional, o jornalismo. Mas foi consequência de muitas coisas, inclusive de eu ter deixado o jornalismo em determinado momento da minha carreira em redações. Porém já deixo cair a ficha para esclarecer que essa saída das redações não tem uma importância vital para gerar autobiografia. Tenho espírito de operário, da turma dos bastidores e fotofobia para enfrentar holofotes. Mas nada que seja dramático. Ponto.
Fiquei, vamos dizer, interditado entre 2010 e 2011 por
conta do romance. Havia o contrato da bolsa de criação que estabelecia prazos
para concluir o projeto.
Fatos: deixei emprego por incompatibilidade e por me sentir infeliz, mas são coisas que não vêm ao caso. Eu saí no escuro, sem perspectivas, sem planos. Mas acho que isso concorreu na verdade para que eu me reconciliasse com o texto, do qual eu estava mais longe devido ao trabalho assumido que também burocratizou a minha vida pessoal.
Quando tomei conhecimento do edital fiquei titubeante, mas naquele momento muitas coisas dispararam internamente quando fiz a pergunta: por que não?
Tomar decisões nem sempre é uma coisa simples. Eu mesmo me pedi um prazo para pensar se ia embarcar nessa canoa e dias depois comecei a preencher o formulário e a escrever um conto, que era um dos requisitos. Nessa transição que começou no preenchimento do formulário de inscrição do projeto até o resultado de concessão da bolsa de literatura vivi também a sensação de estar entrando numa fria.
Que ideia maluca querer ser escritor num país em que a cultura se faz com
sangue, suor e lágrima?
Gosto de desafios por entender que na vida, às vezes, somos jogados no labirinto do Minotauro. Se correr o bicho pega e se ficar o bico come, mas o que é do homem é do homem. E das mulheres, idem.
Fiz uma boa escolha, com prazo de validade: concluir o livro até julho de 2011. E, sem sombra de dúvida, foi um tempo de felicidade. O que seria depois seria. Não fiquei entre os cinco selecionados para publicar o livro pela Funarte, mas esse era o risco. E não era um risco mortal. Fiz uma pausa, voltei a trabalhar porque sobreviver é preciso, mas com a disposição de publicar o livro quando fizesse bom tempo, como na música Bom Tempo, do Chico Buarque.
Taí um vídeo de 1973, onde Chico canta acompanhado pelo
quarteto MPB4. Filmete em preto e branco de um bom tempo
Um marinheiro me contou
Que a boa brisa lhe soprou
que vem aí bom tempo
que vem aí bom tempo
O pescador me confirmou
Que o passarinho lhe cantou
Que vem aí bom tempo
Dou duro toda semana
Senão pergunte à Joana
Que não me deixa mentir
Mas finalmente é domingo
Naturalmente, me vingo
Eu vou me espalhar por aí
No compasso do samba
Eu disfarço o cansaço
Joana debaixo do braço
Carregadinha de amor
Vou que vou
Pela estrada que dá numa praia dourada
Que dá num tal de fazer nada
Como a natureza mandou
Vou
Lá no alto
Sol quente me leva no salto
Pro lado contrário do asfalto
Pro lado contrário da dor
Um marinheiro me contou
Que a boa brisa lhe soprou
que vem aí bom tempo
que vem aí bom tempo
O pescador me confirmou
Que o passarinho lhe cantou
Que vem aí bom tempo
Ando cansado da lida
Preocupada, corrida, surrada, batida
Dos dias meus
Mas uma vez na vida
Eu vou viver a vida
Que eu pedi a Deus
O livro não me dava tempo de ler outros autores como
antes e terminei o ano de 2010 com apenas três livros lidos, digo aquela leitura pessoal, de ficar refestelado no sofá, deixando o mundo correr lá fora sem com ele nos importarmos. Mas li outras
coisas pedidas pelo romance que eu começara a escrever, com uma grande carga de ansiedade, buscando referência em texto de escritores alemães, revistas, poesia e
outras tantas leituras de imersão, além do monte de anotações pessoais que fui
desencavando de gavetas e caixas.
Entre os autores que descobri, um deles me provocou emoções
intensas: o berlinense Günter Kunert, nascido em 1929, que viveu a adolescência
na Berlin destruída na Segunda Guerra Mundial. Filho de mãe judia, foi proibido
pelas leis nazistas de ascender à escola secundária depois de concluir os
estudos na escola primária. Ele vive com
a esposa no extremo norte da Alemanha e se dedica exclusivamente à literatura.
Tem mais de 100 livros publicados.
Um sobrevivente.
Tão encantado fiquei com um conto de Kunert publicado
numa antologia de autores alemães do século XX que não resisti em sequestra-lhe
um personagem para a berlinda num dos capítulos do livro. O conto é “História
cotidiana de uma rua berlinense”, do livro “Escombros e caprichos”, da editora L&PM, organizado por Rolf G. Renner e Marcelo Backes.
Um pouco mais sobre ele pode ser lido nesta página da
Deutsche Welle, em português. Siga o link “Günter Kunert e a certeza da catástrofe”.
Deixo um poema dele que ficou sempre perto de mim
enquanto eu construía o meu romance, juntamente com outros poemas que gosto de
ler como se fossem oração. O poema é “Para mais do que eu”.
Sou aquele que busca
Um caminho
Para tudo o que é mais
Do que
Metabolismo
Circulação sanguínea
Alimentação
Decomposição das células.
Sou aquele que busca
Um caminho
Que é mais largo
Do que eu.
Não demasiado estreito.
Não a via-de-um-homem-só.
Mas tampouco
A poeirenta estrada
Mil vezes percorrida.
Sou aquele que busca
Um caminho
Um caminho para mais
Do que eu
sábado, 17 de agosto de 2013
Meus títulos inesquecíveis
A berlinda foi concebida por artesão que vivia em Berlim. By Ronald Junqueiro Berlinda é uma palavra com significado especial na vida dos paraenses, muito especial. Para mim, paraense confesso e por nascimento, não seria diferente, uma vez que a palavra está enraizada desde as primeiras lembranças infantis, dos primeiros passos de peregrino e devoto da Virgem de Nazaré, a padroeira, levado no colo dos pais na procissão do segundo domingo de outubro. A berlinda é um dos elementos que compõem este imenso painel da fé cristã.
Quando pensei o romance baixou também a agonia de encontrar o título que sintetizasse razão e emoção,
a química. Mas o título fluiu e colou no livro, como nossas digitais são
impressas nas folhas arquivadas na Secretaria de Segurança Pública e o polegar,
na carteira de identidade.
Tenho minha tropa
estelar de autores preferidos, que se alternam entre a cabeceira e as estantes
do apartamento, mas os títulos (além das capas) sempre me seduziram sem que precisem
ser o objeto obscuro do prazer, tanto que muitos autores vieram parar no meu
cantinho por causa do título. Transcendiam a embalagem.
Certa vez, de férias no
Rio de Janeiro, fui à Livraria Leonardo da Vinci, naquela fase juvenil de cair
na farra literária e gozando merecidas férias da redação. Estava caçando uma
edição rara de um livro sobre a Amazônia para um colega jornalista. Não lembro
mais o título da obra rara, mas guardei para sempre aquela manhã memorável,
perdido entre as estantes da livraria com cheiro da biblioteca pública que me
encantava na época de estudante de ensino médio. Eu fazia parte da turma dos
ratos de biblioteca, turma dos sem grana e sem mesada. Estudante que vivia na
pindaíba, mas não desistia da paixão pelos livros.
Hoje penso que meu sentimento era mais ou menos como o do personagem do romance “Ninguém escreve ao coronel”, do Gabriel Garcia Marques, que morreria de fome, mas não sacrificaria seu galo de briga, enquanto esperava pelo dinheiro da aposentadoria que não chegava.
Aliás, este título é
mais bonito em espanhol: ‘El coronel non tiene quien le escriba’ e dele gosto
mais do que “Cem anos de solidão”, do mesmo Garcia Marques, para sempre Gabo, o
que não quer dizer que eu não ame o segundo livro tanto quanto o outro.
Bom, vamos voltar à
livraria carioca, localizada no subsolo do edifício Marques de Herval, na Avenida
Rio Branco, um prédio que virou referência na arquitetura do Rio de Janeiro e
um dos lugares mais queridos de Carlos Drummond de Andrade.
Perdido entre
tabuleiros e estantes, numa das paradinhas para ler lombadas, um livro
despencou sobre meu ombro. Juntei o livro e coloquei-o de volta sem dar-lhe
muita atenção. Algum tempo depois, o tal livro caiu novamente. Peguei o
exemplar e mais uma vez coloquei-o na estante, olhei para ver se não havia
alguém por perto e nada. O livro caiu mais uma vez e aí disparou o sinal
vermelho da minha imaginação. Devia ser uma visagem procurando o que ler. Pelo
sim, pelo não decidi sair dali e quando me virei de costa para a estante o
livro caiu atrás de mim. Mais uma vez olhei para os lados e desta vez peguei o
tal livro e meus olhos se encheram de curiosidade e alegria: a capa mostrava um
desenho de Stan Laurel (1890-1965) e Oliver Hardy (1892-1957) - O Gordo e o Magro -, minha dupla de comediantes preferida, nas sessões da
tarde da televisão. E o título quase grudava nos meus olhos, projetado numa
tela de cinema com o título de um filme (do livro) que os dois iriam assistir:
“Triste, solitário e final”, do jornalista argentino Oswaldo Soriano.
O livro é uma
preciosidade para mim, pois mistura na trama além de Hardy, o magro, outro
personagem muito conhecido do cinema e da literatura policial, Philllip
Marlowe, detetive criado na ficção por Raymond Chandler. E a busca é para saber
que fim levou Stan Laurel, o Magro, personagem de fim melancólico, bem como o
ator que o interpretava. O livro me cativou por vários motivos e me fez
descobrir o porquê de eu gostar mais Laurel e Hardy do que de Charles Chaplin.
Quando Stan Laurel e
Charles Chaplin chegaram à Nova Iorque, Laurel arqueou os ombros e viu o quanto
seria duro vencer na carreira e na vida. Chaplin encheu o pulmão de ar e disse
que não ter duvida de que aquela cidade seria sua.
Meu coração bateu por
Stan Laurel. Afeto vem assim, sem imposições.
Clique aqui para ver um
episódio de O Gordo e o Magro.
Chegamos à escolha do título “Berlinda –
asas para o fim do mundo", mas quero dizer de antemão que o romance
escrito nada tem a ver com temas religiosos ou ligados à Virgem de Nazaré. São
histórias de pessoas comuns, relatos cotidianos e ordinários. O título tem duas
composições. A segunda “asas para o fim do mundo" é uma frase da letra
“Estado de espírito” musicada pelo meu parceiro Vital Lima, e que publiquei num
texto aqui no blog, no dia 27 de julho de 2013.
O título principal, “Berlinda” está
ligado diretamente à Berlim. É nesta cidade alemã que surgiu o modelo e o nome
da carruagem, que evoluiu e veio parar em Santa Maria de Belém do Grão Pará,
para abrigar a imagem de Nossa Senhora de Nazaré, que atrai milhões de olhares.
Não é para menos, afinal a padroeira está na berlinda.
A carruagem foi criada por volta de 1670
para Frederico Guilherme I, de Brandemburgo, que queria um transporte especial
para passear pela cidade. A carruagem foi concebida por um artesão genovês, de
nome Filipe Chiese, que a batizou de Bérline, nome francês de Berlin. A letra
“d” que passou a integrar o nome berlinda pode justificar-se por influência do
adjetivo “linda”, devido à elegância do coche.
Acho que mais que um título foi, na
verdade, como encontrar um nome de batismo para o romance, que não queria
morrer pagão.
Assim, encontrei o elo literário que eu
queria entre Belém e Berlim e, mais, transformei a berlinda numa nave da
imaginação.
Mas quem está na berlinda afinal?
Minha memória é uma montanha de títulos
e não dá para listar todos aqui. Mas faço uma lista de alguns que me vieram em
flash, mas é só uma brincadeirinha. Qual destes livros eu colocaria na berlinda,
agora, por achar que resumem as impressões digitais do autor? Só não vale a
Bíblia e o Alcorão. Escolhi dez, mas
sempre vou citar mais alguns daqui por diante, até porque o melhor título nem
sempre é o do melhor romance. Vamos nessa:
1. Três casas e um rio, Dalcídio
Jurandir
2. Grande sertão: veredas, João
Guimarães Rosa
3. Narciso em tarde cinza, Jorge Mautner
4. O deus das pequenas coisas,
Arundahati Roy
5. Se um viajante numa noite de inverno,
Ítalo Calvino
6. O ano da morte de Ricardo Reis, José
Saramago
7. O livro dos insultos. H.L. Menken
8. A morte é uma transação solitária,
Ray Bradbury
9. A lua na sarjeta, David Goodis
10. Atire no pianista, David Goodis
Quais
são os seus títulos inesquecíveis?
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sábado, 10 de agosto de 2013
No mundo paralelo
Kreuzberg (Berlim). Lugar que inspirou personagens. By Ronald Junqueiro. |
Voltamos aos personagens. Desde o início
eu sabia que criar os personagens do livro me levaria algumas noites de sono,
pois em “Berlinda – asas para o fim do mundo” são muitos. A história percorre
uma linha do tempo que vai mais ou menos de 1983, antes da queda do muro e
depois salta para 1991 e 1992 e só vai ser retomada em 2006. Na primeira versão,
o livro surgiu como um diário, quase impressões de viagem, mas a narrativa
tomou outro rumo quando Leo, o personagem principal, começou a conduzir a
berlinda que abre cada um dos vinte capítulos. E o Leo acabou por tornar-se meu
cúmplice para escalar o elenco da história, vamos dizer assim. O meu caminho
foi esse: fiz um pacto com o personagem e com isso fui eliminando os habitantes
desse território ficcional, mas não de forma arbitrária. Na verdade, Leo me
ajudou a planejar a narrativa.
Algumas decisões foram difíceis. Como, por exemplo, eliminar histórias que não faziam parte desta geografia pensada para a narrativa centralizada na banda de Berlim. Frankfurt é o único desvio, pois serviu como corredor de entrada e saída para a Alemanha. Foi no diálogo com Leo, o personagem que construí para ser o elo no romance, que os outros personagens foram ganhando vida e sentido. Mas não estabeleci quantos personagens eu levaria nessa aventura literária, não era minha preocupação.
Algumas decisões foram difíceis. Como, por exemplo, eliminar histórias que não faziam parte desta geografia pensada para a narrativa centralizada na banda de Berlim. Frankfurt é o único desvio, pois serviu como corredor de entrada e saída para a Alemanha. Foi no diálogo com Leo, o personagem que construí para ser o elo no romance, que os outros personagens foram ganhando vida e sentido. Mas não estabeleci quantos personagens eu levaria nessa aventura literária, não era minha preocupação.
Mas o número de personagens que irão
atuar no livro define a coreografia e os atos, pois literatura traz esses
componentes ou esse entendimento da dança, do teatro, da ópera, do roteiro do
cinema. E isso pede um planejamento. Todas essas possibilidades se realizam em
diálogos ou descrições, na participação do narrador na arquitetura de um
capítulo, cortes e recortes nas histórias. Quem escreve estabelece o ritmo da
narrativa e precisa estar afinado com essa dinâmica. Sempre tive a impressão de
estar vivendo num universo paralelo e, nele, os personagens criam vida. Essa é
uma experiência pessoal e intransferível.
O barato de escrever é dar visualidade à
escrita e isso pode encantar qualquer um que resolva aventurar-se na trilha do
texto. Essa ideia pode ser ilustrada, por exemplo, pelo telão, a página em
banco do cinema preenchida pela projeção. Um filme que para mim traduz melhor o
que tento dizer dessa sensação é ‘A rosa púrpura do Cairo’.
No filme, é como se a tela substituísse as páginas do romance para a
dimensão onírica vivida pela bela Cecília interpretada por Mia Farrow. Há uma linha
da fantasia que separa o espectador e o telão, como se ele fosse o leitor diante das
páginas de um livro. E o enredo é muito simples: o casamento infeliz de uma
garçonete e um marido bêbado durante a grande depressão econômica americana
iniciada em 1929 e que se estendeu até a Segunda Guerra Mundial, considerada o
mais longo e pior período da crise econômica do século XX.
A genialidade de Woody Allen deu um
sopro de vida ao script, indicado para vários prêmios de roteiro original à
época (1985). Clique aqui.
Não vamos esquecer que cinema e
literatura são duas linguagens e que são produções distintas. O cinema tem uma
natureza coletiva, o livro é feito por uma alma solitária chamado escritor. Mas
há muitos elos entre as duas coisas e uma delas o poder de sedução que anima
seus personagens, a magia e a provocação com que eles podem tocar nossas
emoções e sentimentos.
Recentemente li o romance ‘Por favor, cuide da mamãe’, da escritora sul-coreana Kyung-Sook Shin, que foi uma espécie de reatamento com a literatura asiática da qual eu havia me desviado há muitos anos. Saiu no Brasil pela editora Intrínseca. É um livro tão cinematográfico que sempre me levava para a aldeia pobre da personagem principal, a Senhora Park So-nyo, que era invisível e onipresente, e para Seul e suas metamorfoses de metrópole. É uma história de família narrada de forma dura e delicada. Não tem nada de piegas como aquelas histórias de famílias comportadas de seriados de televisão dos anos 1960. E a forma da narrativa é interessante. Para ilustrar melhor o que quero dizer, eis um trecho do livro que conta a história do desaparecimento da mãe numa estação de trem de Seul e que aos poucos vai sendo construída pelas lembranças dos filhos e do marido........................................................
“Faz uma semana que Mamãe sumiu.
Reunida na casa do seu irmão mais velho, Hyong-chol, a família troca ideias. Você decide preparar panfletos e distribuí-los onde Mamãe foi vista pela última vez. A primeira coisa a fazer, todos concordam, é um panfleto. Obviamente, um panfleto é um recurso antiquado para a situação, mas não há muito que a família da pessoa desaparecida possa fazer, e a pessoa desaparecida é ninguém menos que a sua mãe.
(...)
Seu irmão mais novo, dono de uma loja on-line de roupas, diz que postou na internet que sua mãe sumiu, descreveu o local onde foi vista pela última vez, adicionou sua foto e pediu para que as pessoas entrassem em contato com a família caso a vissem.
(...)
Hyong-chol diz que você é quem deve redigir o panfleto, já que seu trabalho é escrever. Você fica vermelha, como se tivesse sido pega fazendo algo que não devia. Não tem certeza se suas palavras ajudariam a encontrar Mamãe.
(...)
Nome: Park So-nyo
Data de nascimento: 24 de julho de 1938 (69 anos)
Aspecto físico: baixa, cabelos grisalhos com permanente, maçãs de rosto salientes, quando desapareceu vestia uma blusa azul-celeste, casaco branco e saia bege pregueada.
Vista pela última vez na estação de metrô de Seul”.
..........................................................
Em três páginas a autora deflagra o que virá em seguida: até o último capítulo, a busca pela mãe esquecida numa estação de metrô. É um livro de poucos personagens, mas a gente tem ideia de multidão por imaginar o país onde a história é narrada. Os contrastes se encarregam de nos dar essa impressão no contraponto que a autora faz entre a zona rural e a megametrópole. Além do cenário, o livro talha muito bem os personagens para que o leitor componha cada um na sua imaginação.
O livro é dividido em cinco capítulos que misturam narradores e narrativas e uma coisa que me intrigava sempre era saber para quem a história era contada por ser tão intimista. Uma hora lembra diário, outras o confessional e há momentos em que não se sabe para quem a história está sendo contada. Pode ser um pouco confuso, mas você acaba resolvendo a cor da rosa e desde logo sabe que ela não é do Cairo. É uma rosa da Coreia do Sul.
Gosto desta opinião sobre o livro "Por favor, cuide de mamãe" que li no r.izze.nhas, um blog que encontrei por aí, googleando na internet.
Livros também podem ser fontes originais de scripts, palavra reduzida do inglês manuscript (pt. Escrito à mão). Siga seu impulso e mãos à obra. Se o tesão de escrever é grande, não adie muito o momento de embarcar nessa viagem.
A capa do livro é atraente e capas são motivos que já me fizeram levar o livro à primeira vista. Lá atrás, eu sonhei um dia ser capista. Mas são desses sonhos que servem apenas como fitinhas que se perdem no tempo penduradas à árvore dos desejos. O tempo mesmo resolve.
sábado, 3 de agosto de 2013
Entre os muros da imaginação
Entre o Olimpo imaginário e percepções terrenas. By Ronald Junqueiro
Belém e Berlim. A sonoridade das duas
palavras dançava na minha cabeça como o badalo de um sino anunciando uma boa
nova - ou um funeral. São palavras meio anasaladas e de um som metálico como o
que soa em Belém, por exemplo, na poesia de Manoel Bandeira:
Bembelelém!
Viva Belém!
Nortista
gostosa
Eu
te quero bem.
Berlim e Belém. O que
podiam ter em comum as duas cidades que seriam cenários do romance que
eu queria escrever? O tempo que eu percorri entre cá e lá e seus intervalos,
que revelavam encontros e desencontros de almas gêmeas e de almas avulsas? Eu
sentia que as duas se alimentavam de paixões inusitadas. Esse ir e vir começou
em 1983, o ano em que conheci o muro e atravessei a fronteira para ‘desvendar’
os enigmas de Berlim Oriental, numa dessas tardes assim. Mas o muro era apenas um artifício, pois lá e cá os corações batiam como
qualquer coração.
Manoel Bandeira não foi
o único a se apaixonar por Belém. Outro modernista, Mário de Andrade esteve por
aqui e tudo o que viu e sentiu registrou no livro ‘O turista aprendiz’. E a
lista de amantes da cidade é extensa.
Mario de Andrade Velas encarnadas de pescadores,
Velas
coloridas de todas as cores,
Águas
borrosas de rios-mares,
Mangueiras,
mangueiras, palmares, palmares,
E
a barbadianinha que ficou por lá!...
Que
alegre porto,
Belém
do Pará!
Que
porto alegre, Belém do Pará!
Vamos
no mercado, tem munguzá!
Vamos
na baía, tem barco veleiro!
Vamos
nas estradas que tem mangueiras!
Vamos
ao terraço beber guaraná!
Oh
alegre porto,
Belém
do Pará!
O
sol molengo no pouso ameno,
Calorão
batendo que nem um remo,
Que
gostosura de dormir de dia!
Que
luz! Que alegria! Que malincolia!
E
a barbadianinha que ficou por lá!
Que
alegre porto,
Belém
do Pará!
A
barbadianinha que ficou por lá
Relando
no branco dos moços de linho
Passeando
no Souza, que lindo caminho!
À
sombra de enorme frondosa mangueira,
Depois
que choveu a chuva para-já!
Oh
barbadianinha,
Belém
do Pará!
Lá
se goza mais que em New York ou Viena!
Só
cada olhar roxo de cada morena
De
tipo mexido, cocktail brasileiro,
Alimenta
mais que um açaizeiro,
Nosso
gosto doce de homem com mulher!
No
Pará se para, nada mais se quer!
Prova
tucupi! Prova tacacá!
Que
alegre porto,
Belém do Pará!
Belém é assim, feita de
amores e dores.
Lembro-me das primeiras
aulas de História do Brasil, com alguns capítulos dedicados ao Pará, nos quais
conheci a “Tragédia do Brigue Palhaço”, palco da agonia das 250 pessoas
asfixiadas no porão do navio a mando do comandante naval inglês John Pascoe
Grenfell, em 1823. E na sala de aula ouvi também sobre a Cabanagem. O levante
do povo contra as forças dominantes, iniciado em 1835, e tido como a maior
rebelião popular ocorrida no Brasil, deixou mais de 35 mil mortos no Pará -
cerca de 30% da população do estado na época. Belém viveu dias trágicos e
sangrentos. Esses episódios ficaram na minha memória de estudante.
Um passeio pela
história pode ser um grande programa para se descobrir que a cidade parece ter
sido construída para ser um cenário aberto a todas as produções reais ou
imagináveis.
A tragédia de Berlim,
mais próxima de nós na linha do tempo, está ligada dramaticamente à Segunda
Guerra Mundial. Uma cidade marcada a ferro e fogo na memória da humanidade, presente
até os nossos dias. A destruição de Berlim é um dos episódios mais explorados
no cinema e na literatura. Lembro que um dos filmes que me causaram grande
impacto foi “Alemanha, ano zero” (1948), que faz parte da trilogia criada pelo
cineasta italiano Roberto Rosselini. Virou um dos meus filmes de cabeceira.
Quero falar dele mais adiante.
Belém testemunhou
também o ódio gerado pela guerra quando, em agosto de 1942, um navio mercante
brasileiro bombardeado por um submarino alemão afundou perto daqui. A
população, revoltada, destruiu e incendiou casas de imigrantes alemães,
japoneses e italianos que foram levados para um ‘campo de concentração’ criado
em Tomé-Açu.
A dor e o trágico unem as duas cidades.
Meu olhar subjetivo sobre Belém e Berlim não me deixava dúvida de que elas eram cidades de almas gêmeas. Este foi um dos pontos em cruz com que contei uma história, sem nem mesmo ter a habilidade das bordadeiras em cada ponto em nó. Arrisquei. E deixei solta a imaginação, com a intenção de transformar cada capítulo escrito em pixels, palavra que lembra o serrilhado dos pontos em cruz e, a meu ver, representa o que é o texto, quando a partir dele construímos cenários e personagens.
Pixel é uma palavra formada
pela composição dos termos Picture e Element ou elemento da imagem.
Assim como se espalhou pelos quatro ventos nas cabeças pensantes e não pensantes que uma imagem
vale mais que mil palavras, penso também que um texto é tão artes plásticas
quanto um quadro de Paul Gauguin ou tão revelador quanto uma fotografia de
Cartier Bresson. O texto guarda em si tanto o óbvio e a sutileza quanto os guardam os elementos da
imagem. A qualidade é uma discussão para depois.
Escrever o romance
fez-me pensar que a vida é um painel de múltiplas conexões e percepções. Curto
a ideia dessas histórias contadas com movimentos de fios luminosos e coloridos,
na forma artesanal do ponto em cruz. Isso evoca imagens serrilhadas de uma
imagem aumentada exageradamente na tela do computador sugerindo o que numa
resolução normal representa os milhões de pixels que formam a imagem pronta
para impressão. Na literatura, a vida é impressa em texto.
Vivi o medo desses
delírios do escrever e isso me permitiu alimentar meu espírito ficcional e
entregar-me à intuição, onde técnica ou método eram elementos ausentes em
determinados momentos. O medo me ajudou a equilibrar prazer e exaustão, algumas
vezes.
E me vali, na minha
cota de delírios, do auxílio luxuoso de coisas que povoavam minha cabeça, como
algumas leituras de anos atrás sobre mitologia, um tema que me encanta até
hoje.
Quem se lembra das
Moiras da mitologia grega? Aquelas três irmãs medonhas que decidiam sobre a
vida dos seres humanos e dos deuses? Acho que temos alguma coisa delas dentro
de nós quando assumimos o papel de autor. Determinamos a vida e a morte dos personagens
e nem Zeus contesta a decisão. E assim abriguei na minha imaginação as deusas
Cloto, Láquesis e Átropos, responsáveis por fabricar, tecer e cortar o fio da
vida. Elas estão representadas na ‘Roda da Fortuna’, carta do Tarô.
Na mitologia romana
elas são conhecidas como Parcas. São as deusas Nona, Décima e Morta. Nona tece
o fio da vida por nove meses, Décima cuida da sua extensão e Morta corta o fio.
Elas são chamadas também de fates, de onde provém a palavra fatalidade.
Durante todo o tempo em
que escrevia o romance, dei-me conta de que essas figuras lúgubres estão mais
perto de nós do que pensamos. Meus primeiros passos na escola aconteceram numa
sala de aula informal. Andava duas quadras e ia bater na porta de um casarão na
Batista Campos onde moravam três senhoras solteironas. Uma delas era a
professora que alfabetizava as crianças do bairro e arredores. A sala de aula
era uma varanda meio escura, com luz vazando de uma janela que dava para um
saguão de onde vinha cheiro de galinhas e de galinheiro. Aprendi muita lição na
marra, nos dias de sabatina, ao peso da palmatória e da dor provocada pelas pancadas
que a tal professora aplicava em nossas mãos fechadas em punho, pancadas
rápidas na junção dos dedos. Dava para ver estrelas. O que sobrava de gordura
nas duas irmãs mais novas faltava na professora, que era seca, murcha, ossuda.
Pareciam as Moiras. Ou as Parcas.
Esses tempos de tortura
não duraram muito. E fui salvo pelo gongo. Ou melhor, quando minha mãe
descobriu que eu estava com problemas de fala, pois soletrava algumas palavras
como aprendia com a professora: eu estava falando tatibitati.
Fui literalmente
removido da escolinha. Mas não guardei ódio da bruxa. A nova professora para onde
fui levado era pior. Lição errada, joelho no milho. Ah, aquela branquela
nazista!
Tudo isso ficou na
minha cabeça. E me inspirou.
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