sábado, 31 de agosto de 2013

Coração de viajante

Mosaicos do grande artista Juan Miró, Las Ramblas, Barcelona.  (Wikipédia)

Quando vi que dera o primeiro passo e que escrevi os primeiros parágrafos do livro, compreendi que voltar seria um transtorno sem tamanho. Fui buscar entre meus guardados o velho espírito de mochileiro, que pode estar escondido num cantinho escuro de cada um. Eu já vivera algumas aventuras do tipo, em viagens solo. Essa foi a lógica que usei para a viagem que seria escrever o roteiro Belém-Berlim e vice-versa.

O meu primeiro tour europeu se deu meio assim.  Depois dos compromissos de uma viagem de intercâmbio que me levou à Alemanha, deixei minha mala numa república estudantil, peguei um trem em Frankfurt e fui bater perna pela Itália, Espanha, Portugal e França. A minha primeira mochila, verde oliva, foi comprada numa loja da rede El Corte Inglés, numa rebaja final com bons descontos, em Barcelona.  Antes eu tinha uma valise pequena, mas ela não combinava com aquela ideia de liberdade traduzida por uma boa mochila. Putz, minha coluna vertebral sofreu pra caramba!

Foi uma aventura inesquecível e uma prova de coragem para alguém que decidiu botar a cara no mundo sem nenhum plano na manga, nem plano B. A juventude tem essa coisa a seu favor, o destemor, o ímpeto, o topar desafios para realizar um sonho.

Ao olhar para esse tempo, sinto que fiquei um pouco mais covarde. Ou talvez mais ponderado, até porque não tenho a energia de antes para carregar uma mochila dessas de botar o pé na estrada, que acompanha a gente na aventura de comer poeira e estar para o que der e vier.

Mas ressuscitei o mochileiro noutra dimensão, das letras, dos roteiros imaginários, por entender que escrever seria, também, como pegar estrada, entrar numa estação e seguir para qualquer destino; reservar um voo e sentir cheiro de aeroporto...

Só que para escrever havia um plano e me vi obrigado a adotar uma disciplina em função dos prazos a cumprir. Exercer a disciplina não me era estranho, por educação, por exercício da profissão e por ter em certa dose uma postura meio prussiana para tarefas. Só que aqui havia um diferencial: eu estava entrando numa área nova e experimentando o que eu já ouvia há algum tempo sobre o que era o processo criativo. E daí a coisa muda de figura.

Essa realidade de viajante teve uma influência muito grande na concepção do romance, principalmente no trabalho que chamo de “escavação da memória”. Enquanto escrevia o livro e revirava cadernos de anotações e agendas, encontrei um tíquete do metrô de Madri e um simples pedaço de papel abriu uma porta para memória de situações incríveis como andar pela cidade, parar nas praças, entrar em museus ou simplesmente ficar num cruzamento olhando o movimento das avenidas e calles, como por exemplo, na incrível rua Gran Via, em Madri, que percorri de ponta a ponta.

E logo depois me veio à lembrança a vendedora de passagens na estação de trem de Barcelona, simpática moça, confessando para mim, quando comprava passagens para Madri, que era colecionadora de moedas estrangeiras. E veio a pergunta meio tímida se eu tinha moedas do Brasil para vender-lhe.
- Hay monedas de Brasil?
- Tengo unos cuantos, pero te puedo dar...
- No puedo aceptar sin pagarle. Te puedo dar sellos de España.

E assim ficamos acertados. Dei à chica um punhado de moedas, acho que cruzeiros, e ela me deu em troca uma cartela com quatro selos. Enquanto comprava a passagem ela me forneceu algumas informações básicas e até me indicou um local para hospedar-me, a Pensão do Juan. Explicou como chegar à pousada. Não precisava pegar táxi. Bastava atravessar uma praça, pegar uma rua à esquerda e seguir duas quadras. Disse-me que podia falar a Juan que ela havia indicado a pensão. Eles eram amigos. Era um prédio antigo, de dois andares e ficava pertíssimo do incrível boulervard Las Ramblas, tudo o que eu precisava para conhecer a noite de Barcelona.

Aproveitei para dormir a tarde toda. Acordei, tomei um banho que me custou algumas pesetas. Aprendi que se pagava caro por água na Europa. E fui para Las Ramblas. Noite memorável. Entrei numa sessão do cine Coliseo para assistir a estreia de Flashdance. Fiquei apaixonado por Jennifer Beals.

Jamais esqueceria este dia, pois na volta para Pensão do Juan, desci Las Ramblas iluminada e fervilhando. Meu olho bateu direto numa tenda que trazia na fachada um nome familiar: Terraza Brasil.

E para completar a noite, duas putas davam porrada em um marinheiro por terem sido negaceadas, pelo que entendi, ou levaram o calote, não sei. Mas tudo era tão dejà vu. Barcelona é cidade de porto, como Belém. A primeira imagem que me veio à memória naquele momento foi a do Bar do Parque, da Praça da República e do Theatro da Paz.

Escrevi “Berlinda – asas para o fim do mundo” com se fosse um viajante. É o que fazemos na vida. Estamos sempre a bordo de alguma coisa que não precisa ser um barquinho ou um transatlântico, nem lombo de burro, nem mesmo um trem bala. Mas fazemos paradas aqui e acolá, e conhecemos gente que passa, uns demoram-se um pouco mais e há sempre uma paisagem que ganha vida. E nosso olhar.

No mínimo, dá para escrever um diário de bordo.

sábado, 24 de agosto de 2013

Para mais do que eu

Sou aquele que busca um caminho mais largo do que eu. By Suely Nascimento
Escrever é um exercício incomparável. O jornalismo foi a grande via que descobri bem cedo, antes mesmo de enfrentar a crise da escolha profissional, como forma de buscar o que todos os reles mortais querem: não apenas realização, mas felicidade. O texto foi meu grande aliado nesta busca. A ele cheguei não apenas pela escrita autoral, mas também pela leitura. Ler e escrever constituem, a meu ver, um grande exemplo da cumplicidade dos pares, dos casamentos, das parcerias. E como a busca pela realização e pela felicidade não tem fim, eis a chama que pode alimentar os sonhos. Sonhos de vida. Mas quem disse que isso é fácil?

Não quero dizer com isso que escrever o romance foi uma sequência natural ou previsível da minha primeira escolha profissional, o jornalismo. Mas foi consequência de muitas coisas, inclusive de eu ter deixado o jornalismo em determinado momento da minha carreira em redações. Porém já deixo cair a ficha para esclarecer que essa saída das redações não tem uma importância vital para gerar autobiografia. Tenho espírito de operário, da turma dos bastidores e fotofobia para enfrentar holofotes. Mas nada que seja dramático. Ponto.

Fiquei, vamos dizer, interditado entre 2010 e 2011 por conta do romance. Havia o contrato da bolsa de criação que estabelecia prazos para concluir o projeto.

Fatos: deixei emprego por incompatibilidade e por me sentir infeliz, mas são coisas que não vêm ao caso. Eu saí no escuro, sem perspectivas, sem planos. Mas acho que isso concorreu na verdade para que eu me reconciliasse com o texto, do qual eu estava mais longe devido ao trabalho assumido que também burocratizou a minha vida pessoal.

Quando tomei conhecimento do edital fiquei titubeante, mas naquele momento muitas coisas dispararam internamente quando fiz a pergunta: por que não?

Tomar decisões nem sempre é uma coisa simples. Eu mesmo me pedi um prazo para pensar se ia embarcar nessa canoa e dias depois comecei a preencher o formulário e a escrever um conto, que era um dos requisitos. Nessa transição que começou no preenchimento do formulário de inscrição do projeto até o resultado de concessão da bolsa de literatura vivi também a sensação de estar entrando numa fria.

Que ideia maluca querer ser escritor num país em que a cultura se faz com sangue, suor e lágrima?

Gosto de desafios por entender que na vida, às vezes, somos jogados no labirinto do Minotauro. Se correr o bicho pega e se ficar o bico come, mas o que é do homem é do homem. E das mulheres, idem.

Fiz uma boa escolha, com prazo de validade: concluir o livro até julho de 2011. E, sem sombra de dúvida, foi um tempo de felicidade. O que seria depois seria. Não fiquei entre os cinco selecionados para publicar o livro pela Funarte, mas esse era o risco. E não era um risco mortal. Fiz uma pausa, voltei a trabalhar porque sobreviver é preciso, mas com a disposição de publicar o livro quando fizesse bom tempo, como na música Bom Tempo, do Chico Buarque.

Taí um vídeo de 1973, onde Chico canta acompanhado pelo quarteto MPB4. Filmete em preto e branco de um bom tempo

Um marinheiro me contou
Que a boa brisa lhe soprou
que vem aí bom tempo
O pescador me confirmou
Que o passarinho lhe cantou
Que vem aí bom tempo

Dou duro toda semana
Senão pergunte à Joana
Que não me deixa mentir
Mas finalmente é domingo
Naturalmente, me vingo
Eu vou me espalhar por aí

No compasso do samba
Eu disfarço o cansaço
Joana debaixo do braço
Carregadinha de amor
Vou que vou

Pela estrada que dá numa praia dourada
Que dá num tal de fazer nada
Como a natureza mandou
Vou

Lá no alto
Sol quente me leva no salto
Pro lado contrário do asfalto
Pro lado contrário da dor

Um marinheiro me contou
Que a boa brisa lhe soprou
que vem aí bom tempo
O pescador me confirmou
Que o passarinho lhe cantou
Que vem aí bom tempo
Ando cansado da lida
Preocupada, corrida, surrada, batida
Dos dias meus
Mas uma vez na vida
Eu vou viver a vida
Que eu pedi a Deus

O livro não me dava tempo de ler outros autores como antes e terminei o ano de 2010 com apenas três livros lidos, digo aquela leitura pessoal, de ficar refestelado no sofá, deixando o mundo correr lá fora sem com ele nos importarmos. Mas li outras coisas pedidas pelo romance que eu começara a escrever, com uma grande carga de ansiedade, buscando referência em texto de escritores alemães, revistas, poesia e outras tantas leituras de imersão, além do monte de anotações pessoais que fui desencavando de gavetas e caixas.

Entre os autores que descobri, um deles me provocou emoções intensas: o berlinense Günter Kunert, nascido em 1929, que viveu a adolescência na Berlin destruída na Segunda Guerra Mundial. Filho de mãe judia, foi proibido pelas leis nazistas de ascender à escola secundária depois de concluir os estudos na escola primária.  Ele vive com a esposa no extremo norte da Alemanha e se dedica exclusivamente à literatura. Tem mais de 100 livros publicados.

Um sobrevivente.

Tão encantado fiquei com um conto de Kunert publicado numa antologia de autores alemães do século XX que não resisti em sequestra-lhe um personagem para a berlinda num dos capítulos do livro. O conto é “História cotidiana de uma rua berlinense”, do livro “Escombros e caprichos”, da editora L&PM, organizado por Rolf G. Renner e Marcelo Backes.

Um pouco mais sobre ele pode ser lido nesta página da Deutsche Welle, em português. Siga o link “Günter Kunert e a certeza da catástrofe”.

Deixo um poema dele que ficou sempre perto de mim enquanto eu construía o meu romance, juntamente com outros poemas que gosto de ler como se fossem oração. O poema é “Para mais do que eu”.

Sou aquele que busca
Um caminho
Para tudo o que é mais
Do que
Metabolismo
Circulação sanguínea
Alimentação
Decomposição das células.
Sou aquele que busca
Um caminho
Que é mais largo
Do que eu.
Não demasiado estreito.
Não a via-de-um-homem-só.
Mas tampouco
A poeirenta estrada
Mil vezes percorrida.
Sou aquele que busca
Um caminho
Um caminho para mais
Do que eu

sábado, 17 de agosto de 2013

Meus títulos inesquecíveis

A berlinda foi concebida por artesão que vivia em Berlim. By Ronald Junqueiro

Berlinda é uma palavra com significado especial na vida dos paraenses, muito especial. Para mim, paraense confesso e por nascimento, não seria diferente, uma vez que a palavra está enraizada desde as primeiras lembranças infantis, dos primeiros passos de peregrino e devoto da Virgem de Nazaré, a padroeira, levado no colo dos pais na procissão do segundo domingo de outubro. A berlinda é um dos elementos que compõem este imenso painel da fé cristã.

Quando pensei o romance baixou também a agonia de encontrar o título que sintetizasse razão e emoção, a química. Mas o título fluiu e colou no livro, como nossas digitais são impressas nas folhas arquivadas na Secretaria de Segurança Pública e o polegar, na carteira de identidade.

Tenho minha tropa estelar de autores preferidos, que se alternam entre a cabeceira e as estantes do apartamento, mas os títulos (além das capas) sempre me seduziram sem que precisem ser o objeto obscuro do prazer, tanto que muitos autores vieram parar no meu cantinho por causa do título. Transcendiam a embalagem.

Certa vez, de férias no Rio de Janeiro, fui à Livraria Leonardo da Vinci, naquela fase juvenil de cair na farra literária e gozando merecidas férias da redação. Estava caçando uma edição rara de um livro sobre a Amazônia para um colega jornalista. Não lembro mais o título da obra rara, mas guardei para sempre aquela manhã memorável, perdido entre as estantes da livraria com cheiro da biblioteca pública que me encantava na época de estudante de ensino médio. Eu fazia parte da turma dos ratos de biblioteca, turma dos sem grana e sem mesada. Estudante que vivia na pindaíba, mas não desistia da paixão pelos livros.

Hoje penso que meu sentimento era mais ou menos como o do personagem do romance “Ninguém escreve ao coronel”, do Gabriel Garcia Marques, que morreria de fome, mas não sacrificaria seu galo de briga, enquanto esperava pelo dinheiro da aposentadoria que não chegava.

Aliás, este título é mais bonito em espanhol: ‘El coronel non tiene quien le escriba’ e dele gosto mais do que “Cem anos de solidão”, do mesmo Garcia Marques, para sempre Gabo, o que não quer dizer que eu não ame o segundo livro tanto quanto o outro.

Bom, vamos voltar à livraria carioca, localizada no subsolo do edifício Marques de Herval, na Avenida Rio Branco, um prédio que virou referência na arquitetura do Rio de Janeiro e um dos lugares mais queridos de Carlos Drummond de Andrade.

Perdido entre tabuleiros e estantes, numa das paradinhas para ler lombadas, um livro despencou sobre meu ombro. Juntei o livro e coloquei-o de volta sem dar-lhe muita atenção. Algum tempo depois, o tal livro caiu novamente. Peguei o exemplar e mais uma vez coloquei-o na estante, olhei para ver se não havia alguém por perto e nada. O livro caiu mais uma vez e aí disparou o sinal vermelho da minha imaginação. Devia ser uma visagem procurando o que ler. Pelo sim, pelo não decidi sair dali e quando me virei de costa para a estante o livro caiu atrás de mim. Mais uma vez olhei para os lados e desta vez peguei o tal livro e meus olhos se encheram de curiosidade e alegria: a capa mostrava um desenho de Stan Laurel  (1890-1965) e Oliver Hardy (1892-1957) - O Gordo e o Magro -, minha dupla de comediantes preferida, nas sessões da tarde da televisão. E o título quase grudava nos meus olhos, projetado numa tela de cinema com o título de um filme (do livro) que os dois iriam assistir: “Triste, solitário e final”, do jornalista argentino Oswaldo Soriano.

O livro é uma preciosidade para mim, pois mistura na trama além de Hardy, o magro, outro personagem muito conhecido do cinema e da literatura policial, Philllip Marlowe, detetive criado na ficção por Raymond Chandler. E a busca é para saber que fim levou Stan Laurel, o Magro, personagem de fim melancólico, bem como o ator que o interpretava. O livro me cativou por vários motivos e me fez descobrir o porquê de eu gostar mais Laurel e Hardy do que de Charles Chaplin.

Quando Stan Laurel e Charles Chaplin chegaram à Nova Iorque, Laurel arqueou os ombros e viu o quanto seria duro vencer na carreira e na vida. Chaplin encheu o pulmão de ar e disse que não ter duvida de que aquela cidade seria sua.

Meu coração bateu por Stan Laurel. Afeto vem assim, sem imposições.

Clique aqui para ver um episódio de O Gordo e o Magro.

Chegamos à escolha do título “Berlinda – asas para o fim do mundo", mas quero dizer de antemão que o romance escrito nada tem a ver com temas religiosos ou ligados à Virgem de Nazaré. São histórias de pessoas comuns, relatos cotidianos e ordinários. O título tem duas composições. A segunda “asas para o fim do mundo" é uma frase da letra “Estado de espírito” musicada pelo meu parceiro Vital Lima, e que publiquei num texto aqui no blog, no dia 27 de julho de 2013.

O título principal, “Berlinda” está ligado diretamente à Berlim. É nesta cidade alemã que surgiu o modelo e o nome da carruagem, que evoluiu e veio parar em Santa Maria de Belém do Grão Pará, para abrigar a imagem de Nossa Senhora de Nazaré, que atrai milhões de olhares. Não é para menos, afinal a padroeira está na berlinda.

A carruagem foi criada por volta de 1670 para Frederico Guilherme I, de Brandemburgo, que queria um transporte especial para passear pela cidade. A carruagem foi concebida por um artesão genovês, de nome Filipe Chiese, que a batizou de Bérline, nome francês de Berlin. A letra “d” que passou a integrar o nome berlinda pode justificar-se por influência do adjetivo “linda”, devido à elegância do coche.

Acho que mais que um título foi, na verdade, como encontrar um nome de batismo para o romance, que não queria morrer pagão.

Assim, encontrei o elo literário que eu queria entre Belém e Berlim e, mais, transformei a berlinda numa nave da imaginação.

Mas quem está na berlinda afinal?

Minha memória é uma montanha de títulos e não dá para listar todos aqui. Mas faço uma lista de alguns que me vieram em flash, mas é só uma brincadeirinha. Qual destes livros eu colocaria na berlinda, agora, por achar que resumem as impressões digitais do autor? Só não vale a Bíblia e o Alcorão.  Escolhi dez, mas sempre vou citar mais alguns daqui por diante, até porque o melhor título nem sempre é o do melhor romance. Vamos nessa:

1. Três casas e um rio, Dalcídio Jurandir
2. Grande sertão: veredas, João Guimarães Rosa
3. Narciso em tarde cinza, Jorge Mautner
4. O deus das pequenas coisas, Arundahati Roy
5. Se um viajante numa noite de inverno, Ítalo Calvino
6. O ano da morte de Ricardo Reis, José Saramago
7. O livro dos insultos. H.L. Menken
8. A morte é uma transação solitária, Ray Bradbury
9. A lua na sarjeta, David Goodis
10. Atire no pianista, David Goodis

Quais são os seus títulos inesquecíveis?

sábado, 10 de agosto de 2013

No mundo paralelo

Kreuzberg (Berlim). Lugar que inspirou personagens. By Ronald Junqueiro.
Voltamos aos personagens. Desde o início eu sabia que criar os personagens do livro me levaria algumas noites de sono, pois em “Berlinda – asas para o fim do mundo” são muitos. A história percorre uma linha do tempo que vai mais ou menos de 1983, antes da queda do muro e depois salta para 1991 e 1992 e só vai ser retomada em 2006. Na primeira versão, o livro surgiu como um diário, quase impressões de viagem, mas a narrativa tomou outro rumo quando Leo, o personagem principal, começou a conduzir a berlinda que abre cada um dos vinte capítulos. E o Leo acabou por tornar-se meu cúmplice para escalar o elenco da história, vamos dizer assim. O meu caminho foi esse: fiz um pacto com o personagem e com isso fui eliminando os habitantes desse território ficcional, mas não de forma arbitrária. Na verdade, Leo me ajudou a planejar a narrativa.

Algumas decisões foram difíceis. Como, por exemplo, eliminar histórias que não faziam parte desta geografia pensada para a narrativa centralizada na banda de Berlim. Frankfurt é o único desvio, pois serviu como corredor de entrada e saída para a Alemanha. Foi no diálogo com Leo, o personagem que construí para ser o elo no romance, que os outros personagens foram ganhando vida e sentido. Mas não estabeleci quantos personagens eu levaria nessa aventura literária, não era minha preocupação.

Mas o número de personagens que irão atuar no livro define a coreografia e os atos, pois literatura traz esses componentes ou esse entendimento da dança, do teatro, da ópera, do roteiro do cinema. E isso pede um planejamento. Todas essas possibilidades se realizam em diálogos ou descrições, na participação do narrador na arquitetura de um capítulo, cortes e recortes nas histórias. Quem escreve estabelece o ritmo da narrativa e precisa estar afinado com essa dinâmica. Sempre tive a impressão de estar vivendo num universo paralelo e, nele, os personagens criam vida. Essa é uma experiência pessoal e intransferível.

O barato de escrever é dar visualidade à escrita e isso pode encantar qualquer um que resolva aventurar-se na trilha do texto. Essa ideia pode ser ilustrada, por exemplo, pelo telão, a página em banco do cinema preenchida pela projeção. Um filme que para mim traduz melhor o que tento dizer dessa sensação é ‘A rosa púrpura do Cairo’.

No filme, é como se a tela substituísse as páginas do romance para a dimensão onírica vivida pela bela Cecília interpretada por Mia Farrow. Há uma linha da fantasia que separa o espectador e o telão, como se ele fosse o leitor diante das páginas de um livro. E o enredo é muito simples: o casamento infeliz de uma garçonete e um marido bêbado durante a grande depressão econômica americana iniciada em 1929 e que se estendeu até a Segunda Guerra Mundial, considerada o mais longo e pior período da crise econômica do século XX.

A genialidade de Woody Allen deu um sopro de vida ao script, indicado para vários prêmios de roteiro original à época (1985). Clique aqui.

Não vamos esquecer que cinema e literatura são duas linguagens e que são produções distintas. O cinema tem uma natureza coletiva, o livro é feito por uma alma solitária chamado escritor. Mas há muitos elos entre as duas coisas e uma delas o poder de sedução que anima seus personagens, a magia e a provocação com que eles podem tocar nossas emoções e sentimentos.

Recentemente li o romance ‘Por favor, cuide da mamãe’, da escritora sul-coreana Kyung-Sook Shin, que foi uma espécie de reatamento com a literatura asiática da qual eu havia me desviado há muitos anos. Saiu no Brasil pela editora Intrínseca. É um livro tão cinematográfico que sempre me levava para a aldeia pobre da personagem principal, a Senhora Park So-nyo, que era invisível e onipresente, e para Seul e suas metamorfoses de metrópole. É uma história de família narrada de forma dura e delicada. Não tem nada de piegas como aquelas histórias de famílias comportadas de seriados de televisão dos anos 1960. E a forma da narrativa é interessante. Para ilustrar melhor o que quero dizer, eis um trecho do livro que conta a história do desaparecimento da mãe numa estação de trem de Seul e que aos poucos vai sendo construída pelas lembranças dos filhos e do marido.
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“Faz uma semana que Mamãe sumiu.

Reunida na casa do seu irmão mais velho, Hyong-chol, a família troca ideias. Você decide preparar panfletos e distribuí-los onde Mamãe foi vista pela última vez. A primeira coisa a fazer, todos concordam, é um panfleto. Obviamente, um panfleto é um recurso antiquado para a situação, mas não há muito que a família da pessoa desaparecida possa fazer, e a pessoa desaparecida é ninguém menos que a sua mãe.
 (...)
Seu irmão mais novo, dono de uma loja on-line de roupas, diz que postou na internet que sua mãe sumiu, descreveu o local onde foi vista pela última vez, adicionou sua foto e pediu para que as pessoas entrassem em contato com a família caso a vissem.
(...)
Hyong-chol diz que você é quem deve redigir o panfleto, já que seu trabalho é escrever. Você fica vermelha, como se tivesse sido pega fazendo algo que não devia. Não tem certeza se suas palavras ajudariam a encontrar Mamãe.
(...)
Nome: Park So-nyo
Data de nascimento: 24 de julho de 1938 (69 anos)
Aspecto físico: baixa, cabelos grisalhos com permanente, maçãs de rosto salientes, quando desapareceu vestia uma blusa azul-celeste, casaco branco e saia bege pregueada.
Vista pela última vez na estação de metrô de Seul”.
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Em três páginas a autora deflagra o que virá em seguida: até o último capítulo, a busca pela mãe esquecida numa estação de metrô. É um livro de poucos personagens, mas a gente tem ideia de multidão por imaginar o país onde a história é narrada. Os contrastes se encarregam de nos dar essa impressão no contraponto que a autora faz entre a zona rural e a megametrópole. Além do cenário, o livro talha muito bem os personagens para que o leitor componha cada um na sua imaginação.

O livro é dividido em cinco capítulos que misturam narradores e narrativas e uma coisa que me intrigava sempre era saber para quem a história era contada por ser tão intimista. Uma hora lembra diário, outras o confessional e há momentos em que não se sabe para quem a história está sendo contada. Pode ser um pouco confuso, mas você acaba resolvendo a cor da rosa e desde logo sabe que ela não é do Cairo. É uma rosa da Coreia do Sul.

Gosto desta opinião sobre o livro "Por favor, cuide de mamãe" que li no r.izze.nhas, um blog que encontrei por aí, googleando na internet.

Livros também podem ser fontes originais de scripts, palavra reduzida do inglês manuscript (pt. Escrito à mão). Siga seu impulso e mãos à obra. Se o tesão de escrever é grande, não adie muito o momento de embarcar nessa viagem.

A capa do livro é atraente e capas são motivos que já me fizeram levar o livro à primeira vista. Lá atrás, eu sonhei um dia ser capista. Mas são desses sonhos que servem apenas como fitinhas que se perdem no tempo penduradas à árvore dos desejos. O tempo mesmo resolve.

sábado, 3 de agosto de 2013

Entre os muros da imaginação

Entre o Olimpo imaginário e percepções terrenas. By Ronald Junqueiro

Belém e Berlim. A sonoridade das duas palavras dançava na minha cabeça como o badalo de um sino anunciando uma boa nova - ou um funeral. São palavras meio anasaladas e de um som metálico como o que soa em Belém, por exemplo, na poesia de Manoel Bandeira: 
Bembelelém!
Viva Belém!
Nortista gostosa
Eu te quero bem.

Berlim e Belém. O que podiam ter em comum as duas cidades que seriam cenários do romance que eu queria escrever? O tempo que eu percorri entre cá e lá e seus intervalos, que revelavam encontros e desencontros de almas gêmeas e de almas avulsas? Eu sentia que as duas se alimentavam de paixões inusitadas. Esse ir e vir começou em 1983, o ano em que conheci o muro e atravessei a fronteira para ‘desvendar’ os enigmas de Berlim Oriental, numa dessas tardes assim. Mas o muro era apenas um artifício, pois lá e cá os corações batiam como qualquer coração. Esse era o ponto em comum.

Manoel Bandeira não foi o único a se apaixonar por Belém. Outro modernista, Mário de Andrade esteve por aqui e tudo o que viu e sentiu registrou no livro ‘O turista aprendiz’. E a lista de amantes da cidade é extensa.

Mario de Andrade 
mandou para Bandeira o poema ‘Modo do alegre porto', falando dos encantos de Belém.
Velas encarnadas de pescadores,
Velas coloridas de todas as cores,
Águas borrosas de rios-mares,
Mangueiras, mangueiras, palmares, palmares,
E a barbadianinha que ficou por lá!...

Que alegre porto,
Belém do Pará!

Que porto alegre, Belém do Pará!
Vamos no mercado, tem munguzá!
Vamos na baía, tem barco veleiro!
Vamos nas estradas que tem mangueiras!
Vamos ao terraço beber guaraná!

Oh alegre porto,
Belém do Pará!

O sol molengo no pouso ameno,
Calorão batendo que nem um remo,
Que gostosura de dormir de dia!
Que luz! Que alegria! Que malincolia!
E a barbadianinha que ficou por lá!

Que alegre porto,
Belém do Pará!

A barbadianinha que ficou por lá
Relando no branco dos moços de linho
Passeando no Souza, que lindo caminho!
À sombra de enorme frondosa mangueira,
Depois que choveu a chuva para-já!

Oh barbadianinha,
Belém do Pará!

Lá se goza mais que em New York ou Viena!
Só cada olhar roxo de cada morena
De tipo mexido, cocktail brasileiro,
Alimenta mais que um açaizeiro,
Nosso gosto doce de homem com mulher!
No Pará se para, nada mais se quer!
Prova tucupi! Prova tacacá!

Que alegre porto,
Belém do Pará!

Belém é assim, feita de amores e dores.

Lembro-me das primeiras aulas de História do Brasil, com alguns capítulos dedicados ao Pará, nos quais conheci a “Tragédia do Brigue Palhaço”, palco da agonia das 250 pessoas asfixiadas no porão do navio a mando do comandante naval inglês John Pascoe Grenfell, em 1823. E na sala de aula ouvi também sobre a Cabanagem. O levante do povo contra as forças dominantes, iniciado em 1835, e tido como a maior rebelião popular ocorrida no Brasil, deixou mais de 35 mil mortos no Pará - cerca de 30% da população do estado na época. Belém viveu dias trágicos e sangrentos. Esses episódios ficaram na minha memória de estudante.

Um passeio pela história pode ser um grande programa para se descobrir que a cidade parece ter sido construída para ser um cenário aberto a todas as produções reais ou imagináveis.

A tragédia de Berlim, mais próxima de nós na linha do tempo, está ligada dramaticamente à Segunda Guerra Mundial. Uma cidade marcada a ferro e fogo na memória da humanidade, presente até os nossos dias. A destruição de Berlim é um dos episódios mais explorados no cinema e na literatura. Lembro que um dos filmes que me causaram grande impacto foi “Alemanha, ano zero” (1948), que faz parte da trilogia criada pelo cineasta italiano Roberto Rosselini. Virou um dos meus filmes de cabeceira. Quero falar dele mais adiante.

Belém testemunhou também o ódio gerado pela guerra quando, em agosto de 1942, um navio mercante brasileiro bombardeado por um submarino alemão afundou perto daqui. A população, revoltada, destruiu e incendiou casas de imigrantes alemães, japoneses e italianos que foram levados para um ‘campo de concentração’ criado em Tomé-Açu.

A dor e o trágico unem as duas cidades.

Meu olhar subjetivo sobre Belém e Berlim não me deixava dúvida de que elas eram cidades de almas gêmeas. Este foi um dos pontos em cruz com que contei uma história, sem nem mesmo ter a habilidade das bordadeiras em cada ponto em nó. Arrisquei. E deixei solta a imaginação, com a intenção de transformar cada capítulo escrito em pixels, palavra que lembra o serrilhado dos pontos em cruz e, a meu ver, representa o que é o texto, quando a partir dele construímos cenários e personagens.

Pixel é uma palavra formada pela composição dos termos Picture e Element ou elemento da imagem.

Assim como se espalhou pelos quatro ventos nas cabeças pensantes e não pensantes que uma imagem vale mais que mil palavras, penso também que um texto é tão artes plásticas quanto um quadro de Paul Gauguin ou tão revelador quanto uma fotografia de Cartier Bresson. O texto guarda em si tanto o óbvio e a sutileza quanto os guardam os elementos da imagem. A qualidade é uma discussão para depois.

Escrever o romance fez-me pensar que a vida é um painel de múltiplas conexões e percepções. Curto a ideia dessas histórias contadas com movimentos de fios luminosos e coloridos, na forma artesanal do ponto em cruz. Isso evoca imagens serrilhadas de uma imagem aumentada exageradamente na tela do computador sugerindo o que numa resolução normal representa os milhões de pixels que formam a imagem pronta para impressão. Na literatura, a vida é impressa em texto.

Vivi o medo desses delírios do escrever e isso me permitiu alimentar meu espírito ficcional e entregar-me à intuição, onde técnica ou método eram elementos ausentes em determinados momentos. O medo me ajudou a equilibrar prazer e exaustão, algumas vezes.

E me vali, na minha cota de delírios, do auxílio luxuoso de coisas que povoavam minha cabeça, como algumas leituras de anos atrás sobre mitologia, um tema que me encanta até hoje.

Quem se lembra das Moiras da mitologia grega? Aquelas três irmãs medonhas que decidiam sobre a vida dos seres humanos e dos deuses? Acho que temos alguma coisa delas dentro de nós quando assumimos o papel de autor. Determinamos a vida e a morte dos personagens e nem Zeus contesta a decisão. E assim abriguei na minha imaginação as deusas Cloto, Láquesis e Átropos, responsáveis por fabricar, tecer e cortar o fio da vida. Elas estão representadas na ‘Roda da Fortuna’, carta do Tarô.

Na mitologia romana elas são conhecidas como Parcas. São as deusas Nona, Décima e Morta. Nona tece o fio da vida por nove meses, Décima cuida da sua extensão e Morta corta o fio. Elas são chamadas também de fates, de onde provém a palavra fatalidade.

Durante todo o tempo em que escrevia o romance, dei-me conta de que essas figuras lúgubres estão mais perto de nós do que pensamos. Meus primeiros passos na escola aconteceram numa sala de aula informal. Andava duas quadras e ia bater na porta de um casarão na Batista Campos onde moravam três senhoras solteironas. Uma delas era a professora que alfabetizava as crianças do bairro e arredores. A sala de aula era uma varanda meio escura, com luz vazando de uma janela que dava para um saguão de onde vinha cheiro de galinhas e de galinheiro. Aprendi muita lição na marra, nos dias de sabatina, ao peso da palmatória e da dor provocada pelas pancadas que a tal professora aplicava em nossas mãos fechadas em punho, pancadas rápidas na junção dos dedos. Dava para ver estrelas. O que sobrava de gordura nas duas irmãs mais novas faltava na professora, que era seca, murcha, ossuda. Pareciam as Moiras. Ou as Parcas.

Esses tempos de tortura não duraram muito. E fui salvo pelo gongo. Ou melhor, quando minha mãe descobriu que eu estava com problemas de fala, pois soletrava algumas palavras como aprendia com a professora: eu estava falando tatibitati.

Fui literalmente removido da escolinha. Mas não guardei ódio da bruxa. A nova professora para onde fui levado era pior. Lição errada, joelho no milho. Ah, aquela branquela nazista!

Tudo isso ficou na minha cabeça. E me inspirou.