sábado, 6 de julho de 2013

Argamassa e paleta de cores


Cantinho do meu universo particular. Desarrumação. By Ronald Junqueiro
Olho o texto com a disposição do operário da construção civil e com uma paleta de cores de um pintor. Isso não é de agora. Começou no primeiro exercício de redação passado pela professora do grupo escolar, quando professora era professora e não “Tia”, tratamento meio promíscuo inventado há algumas décadas atrás e por motivos que para mim são difusos.

E esse encantamento com o texto tem um nome gravado na memória: professora Nely Bastos Cavalléro, pessoa alegre, jovial, cheia de energia positiva, professora por vocação e não por essa conversa mole de que faz o que faz por sacerdócio, como se o ofício fosse para o santo em porta de oratório.  Era professora porque era professora e acreditava no que fazia, não era uma tiazinha dessas que acabam sendo alvo de desaforo de aluno e pais problemáticos. E muito menos a Tiazinha que virou estrela de filme pornô.

A professora Nely tinha autoridade quase natural e dela se investia do alto dos seus um metro e pouco mais de 50 centímetros. Cabelos sempre arrumados e uma pele branquinha que denunciava qualquer rubor de contentamento. Ela, se tinha problemas fora da sala de aula ninguém saberia. Pra nós, “sobrinhos” da escola pública, ela parecia uma esbanjadora de felicidade, de alegria renovada.

Mais tarde conheci outros professores que souberam bem cuidar da sementinha plantada pela professora Nely, com quem aprendíamos a ler alguns textos recomendados oficialmente e uma ou outra boa crônica que ela trazia para ler, subvertendo a ordem que nos fazia decorar, em tom dramático, cheio de chantagem emocional, o Olavo Bilac com seus versos sobre a avó de oitenta anos. Como eu não era neto e nem mais avó tinha, o poema pouco me comovia. Mas eu me fingia comovido. Em todo caso, quero compartilhar “A avó”, poesia do Bilac que minha mãe lia com o livro na mão e que meu pai sabia de cor. De certa forma, com a poesia aprendíamos a respeitar os mais velhos, que mais pareciam objetos decorativos quando eram adotados pela família e neste ponto vou poupar detalhes sobre obrigação e afeto.

A avó, que tem oitenta anos,
Está tão fraca e velhinha! . . .
Teve tantos desenganos!
Ficou branquinha, branquinha,
Com os desgostos humanos.

Hoje, na sua cadeira,

Repousa, pálida e fria,
Depois de tanta canseira:
E cochila todo o dia,
E cochila a noite inteira.

Às vezes, porém, o bando

Dos netos invade a sala . . .
Entram rindo e papagueando:
Este briga, aquele fala,
Aquele dança, pulando...
A velha acorda sorrindo,
E a alegria a transfigura;
Seu rosto fica mais lindo,
Vendo tanta travessura,
E tanto barulho ouvindo.

Chama os netos adorados,

Beija-os, e, tremulamente,
Passa os dedos engelhados,
Lentamente, lentamente,
Por seus cabelos, doirados.

Fica mais moça, e palpita,

E recupera a memória,
Quando um dos netinhos grita:
"Ó vovó! conte uma história!
Conte uma história bonita!"

Então, com frases pausadas,

Conta histórias de quimeras
Em que há palácios de fadas,
E feiticeiras, e feras,
E princesas encantadas...

E os netinhos estremecem,

Os contos acompanhando,
E as travessuras esquecem,
— Até que, a fronte inclinando
Sobre o seu colo, adormecem...

Olhando ao largo, hoje, penso que ter avó é um barato. Lembro-me da minha irmã mais velha, avó queridíssima de todos os netos, que cedo sofreram um golpe duro quando ela partiu, não para Jerusalém, como pretendia, mas para além daqui. E nem precisou mais do passaporte que chegaria apenas no dia seguinte. Visto pra quê, né?

No meu livro “Berlinda – Asas para o fim do mundo” tem uma avó que em muito lembra a avó do poema de Bilac. Criei uma avó na ficção. Uma homenagem boa aos nossos velhos, que por eles tenho grande afeto.

Como os velhos professores que vieram depois da professorinha Nelly. A professora Enilda que amava Cecília Meirelles e nos apresentou o “Romanceiro da Inconfidência” e o professor Jurandir que nos ensinou a ler com gosto – e gozo – já nos primeiros mergulhos na fonte de José Lins do Rego, Lima Barreto e Guimarães Rosa. O professor era fissurado nas palavras, vocábulos, neologismos, metáforas e significados. Numa determinada aula, virou-se para a turma, e perguntou qual era o sinônimo da palavra ‘safirente’. Antes mesmo de perguntar exibia na cara a expressão de um vitorioso. Nenhum de nós sabia o que era ‘safirente’.

O professor Jurandir postou-se de costa para a classe e, esgrimindo um pedaço de giz na mão, escreveu no quadro negro, quando o quadro era negro, a palavra que ele decifraria para nós naquele momento. Coisa de gênio. Safirente era uma palavra nova que derivava de safira, da pedra azul com a qual o escritor matizara o firmamento na frase “um céu safirente”. Mais um neologismo do mestre Guimarães Rosa e só agora entendo o tom da voz do professor. Ele falava de um jeito “Taurophtongo”, um neologismo criado por Guimarães Rosa que quer dizer mugido, voz de touro. O mestre juntou o termo grego ‘tauros’ ou touro e ‘phtoggos’, que é o som da fala.

Não guardei na memória o texto de onde ele tirou a frase. Mas o encantamento ficou. Aprendi que palavras são encantadas.

Como num jogo de encaixe, um tangram, um puzzle, vou juntando essas peças todas e desenho uma aquarela para mim. Ou levanto tijolo por tijolo num desenho mágico, inspirado pelo grande Chico Buarque. Sou prisioneiro desse encantamento, que também liberta.

A quem interessar possa, a professora Nilce Sant'Anna Martins lançou, em 2001, O Léxico de Guimarães Rosa, pela Edusp


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