Cantinho do meu universo particular. Desarrumação. By Ronald Junqueiro |
Olho o texto com a disposição do operário da construção
civil e com uma paleta de cores de um pintor. Isso não é de agora. Começou no
primeiro exercício de redação passado pela professora do grupo escolar, quando
professora era professora e não “Tia”, tratamento meio promíscuo inventado há
algumas décadas atrás e por motivos que para mim são difusos.
E esse encantamento com o texto tem um nome gravado na
memória: professora Nely Bastos Cavalléro, pessoa alegre, jovial, cheia de
energia positiva, professora por vocação e não por essa conversa mole de que
faz o que faz por sacerdócio, como se o ofício fosse para o santo em porta de
oratório. Era professora porque era
professora e acreditava no que fazia, não era uma tiazinha dessas que acabam
sendo alvo de desaforo de aluno e pais problemáticos. E muito menos a Tiazinha
que virou estrela de filme pornô.
A professora Nely tinha autoridade quase natural e dela
se investia do alto dos seus um metro e pouco mais de 50 centímetros. Cabelos
sempre arrumados e uma pele branquinha que denunciava qualquer rubor de
contentamento. Ela, se tinha problemas fora da sala de aula ninguém saberia.
Pra nós, “sobrinhos” da escola pública, ela parecia uma esbanjadora de
felicidade, de alegria renovada.
Mais tarde conheci outros professores que souberam bem
cuidar da sementinha plantada pela professora Nely, com quem aprendíamos a ler
alguns textos recomendados oficialmente e uma ou outra boa crônica que ela
trazia para ler, subvertendo a ordem que nos fazia decorar, em tom dramático,
cheio de chantagem emocional, o Olavo Bilac com seus versos sobre a avó de
oitenta anos. Como eu não era neto e nem mais avó tinha, o poema pouco me
comovia. Mas eu me fingia comovido. Em todo caso, quero compartilhar “A avó”,
poesia do Bilac que minha mãe lia com o livro na mão e que meu pai sabia de
cor. De certa forma, com a poesia aprendíamos a respeitar os mais velhos, que
mais pareciam objetos decorativos quando eram adotados pela família e neste
ponto vou poupar detalhes sobre obrigação e afeto.
A avó, que tem oitenta anos,
Está tão fraca e velhinha! . . .
Teve tantos desenganos!
Ficou branquinha, branquinha,
Com os desgostos humanos.
Hoje, na sua cadeira,
Repousa, pálida e fria,
Depois de tanta canseira:
E cochila todo o dia,
E cochila a noite inteira.
Às vezes, porém, o bando
Dos netos invade a sala . . .
Entram rindo e papagueando:
Este briga, aquele fala,
Aquele dança, pulando...
A velha acorda sorrindo,
E a alegria a transfigura;
Seu rosto fica mais lindo,
Vendo tanta travessura,
E tanto barulho ouvindo.
Chama os netos adorados,
Beija-os, e, tremulamente,
Passa os dedos engelhados,
Lentamente, lentamente,
Por seus cabelos, doirados.
Fica mais moça, e palpita,
E recupera a memória,
Quando um dos netinhos grita:
"Ó vovó! conte uma história!
Conte uma história bonita!"
Então, com frases pausadas,
Conta histórias de quimeras
Em que há palácios de fadas,
E feiticeiras, e feras,
E princesas encantadas...
E os netinhos estremecem,
Os contos acompanhando,
E as travessuras esquecem,
— Até que, a fronte inclinando
Sobre o seu colo, adormecem...
Olhando ao largo, hoje, penso que ter avó é um barato. Lembro-me
da minha irmã mais velha, avó queridíssima de todos os netos, que cedo sofreram
um golpe duro quando ela partiu, não para Jerusalém, como pretendia, mas para
além daqui. E nem precisou mais do passaporte que chegaria apenas no dia
seguinte. Visto pra quê, né?
No meu livro “Berlinda – Asas para o fim do mundo” tem
uma avó que em muito lembra a avó do poema de Bilac. Criei uma avó na ficção.
Uma homenagem boa aos nossos velhos, que por eles tenho grande afeto.
Como os velhos professores que vieram depois da
professorinha Nelly. A professora Enilda que amava Cecília Meirelles e nos
apresentou o “Romanceiro da Inconfidência” e o professor Jurandir que nos
ensinou a ler com gosto – e gozo – já nos primeiros mergulhos na fonte de José
Lins do Rego, Lima Barreto e Guimarães Rosa. O professor era fissurado nas
palavras, vocábulos, neologismos, metáforas e significados. Numa determinada
aula, virou-se para a turma, e perguntou qual era o sinônimo da palavra
‘safirente’. Antes mesmo de perguntar exibia na cara a expressão de um
vitorioso. Nenhum de nós sabia o que era ‘safirente’.
O professor Jurandir postou-se de costa para a classe e,
esgrimindo um pedaço de giz na mão, escreveu no quadro negro, quando o quadro
era negro, a palavra que ele decifraria para nós naquele momento. Coisa de
gênio. Safirente era uma palavra nova que derivava de safira, da pedra azul com
a qual o escritor matizara o firmamento na frase “um céu safirente”. Mais um
neologismo do mestre Guimarães Rosa e só agora entendo o tom da voz do
professor. Ele falava de um jeito “Taurophtongo”, um neologismo criado por
Guimarães Rosa que quer dizer mugido, voz de touro. O mestre juntou o termo
grego ‘tauros’ ou touro e ‘phtoggos’, que é o som da fala.
Não guardei na memória o texto de onde ele tirou a frase.
Mas o encantamento ficou. Aprendi que palavras são encantadas.
Como num jogo de encaixe, um tangram, um puzzle, vou
juntando essas peças todas e desenho uma aquarela para mim. Ou levanto tijolo
por tijolo num desenho mágico, inspirado pelo grande Chico Buarque. Sou
prisioneiro desse encantamento, que também liberta.
A quem interessar possa, a professora Nilce Sant'Anna Martins lançou, em 2001, O Léxico de Guimarães Rosa, pela Edusp
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