sábado, 27 de julho de 2013

Frankenstein e clonagens

Álbum com crônicas familiares. Grande fonte. By Ronald Junqueiro
No momento em que tracei o primeiro roteiro para o que eu imaginava ser o romance, vi-me diante de um grande latifúndio literário, com a forte impressão de que estava completamente perdido numa terra de ninguém. Piração criativa: como ocupar esse território imaginário, como calcular a densidade populacional, ou melhor, a densidade demográfica desenhada pelos personagens? E por onde começar? Narrar em primeira pessoa ou em terceira pessoa? Total crise existencial de um amador e amante dos livros. De repente, tudo virou um grande exercício pontuado por prazos e obrigações e não dava para voltar atrás.  Sabe aquela sensação de entrar no mato sem cachorro? Não quero exagerar o sentimento como se estivesse vivendo uma autêntica tragédia grega, mas já me sentenciava o desastre provocando pelo impulso, por ato pouco pensado que levou a me candidatar à bolsa de criação literária. O projeto era bom, achava eu. Mas projeto é projeto, realiza-lo são outros quinhentos.

Beco sem saída. Quando me inscrevi à bolsa, logo comecei a fazer escavações na memória e nos meus guardados. Entre impulsos e desânimos, o livro entrava no casulo das ideias fixas. Em abril de 2010, comecei a antecipar coisas, sem qualquer garantia, como por exemplo, pedir demissão do emprego e me inscrever num curso de verão em Berlim. Fiz conta na ponta do lápis e decidi arriscar viver meu ano sabático. Em agosto, três semanas antes de eu viajar para a Alemanha, abri meu e-mail e, grata surpresa e inexplicável alegria, estava lá a convocação da Funarte para que eu providenciasse documentação pedida pelo edital, pois meu projeto para escrever o romance havia sido selecionado. Eu tinha um ano para escrever o livro.

Deu um branco. Eu não queria pensar. Arrumei a mala e me mandei para Berlim.

Voltei para Belém no início de novembro e abri a porta para a louca da casa, a senhora imaginação. Iniciei meu autoexílio a bordo da berlinda na qual eu iria viajar escrevendo o romance, que já tinha título antes mesmo de eu começar a escrevê-lo: “Berlinda – Asas para o fim do mundo”.

A frase “asas para o fim do mundo” que juntei ao título principal é da letra da música “Estado de espírito”, feita em parceria com o compositor paraense Vital Lima, gravada depois da queda do muro de Berlim. A composição do título selou o destino dessa viagem e me inspirou a escrever o livro pelo último capítulo. Mas o “estalo de Vieira”, de fato, só aconteceu no dia em que sentei em frente ao computador e escrevi a primeira frase do primeiro capítulo. É onde começa o mundo de Leo.

Leo representa bem o que falei anteriormente sobre “personagens frankensteins”. Eu costurei várias peles, juntei vários sopros para dar-lhe uma alma, sete vidas e olhares e histórias. Do mesmo modo fui construindo os outros personagens que gravitam em torno dele e que, por sua vez, são centros de gravidade que atraem Leo no desenrolar do romance. Essa experiência, mais que um jogo de encaixe, foi um encontro de emoções e seus matizes.

Quando fui construindo Leo, não queria carregar nas tintas de um protagonista caricato, evidente demais, desses que querem atrair toda audiência para si. Leo, na minha imaginação, era um ser comum que transitava por um mundo comum de pessoas comuns que seguem o mesmo rumo feito de sombra e anonimato. Um tipo facilmente encontrável em qualquer lugar do mundo, sem a dimensão de um Policarpo Quaresma, um dos personagens mais marcantes das minhas leituras de adolescente, criado pela genialidade de Lima Barreto. Aliás, guardo na memória e nas minhas estantes tipos assim como Policarpo Quaresma ou os Josés e Aurelianos Buendia que nasceram pelos dons do mago da escrita Gabriel Garcia Marques no livro “Cem anos de solidão”, uma das minhas paixões literárias despertadas pelos latino-americanos. Paixão do tipo pessoal e intransferível.

E o que não dizer das grandes histórias de amor e tragédia que eternizaram Romeu e Julieta, trazidos ao mundo por William Shakespeare? Ou Eugenia Grandet, de Balzac? Ou a balzaquiana Julia de “A mulher de trinta anos"?

Não há como esquecer Macunaíma, o anti-herói de Mario de Andrade, no mais puro modo brasileiro de ser e que ganhou a cara perfeita através do ator Grande Otelo, no cinema. Inesquecível!


E o mundo de Alfredo, filho da negra Amélia e do major Alberto, criações de Dalcídio Jurandir? Pujante literatura amazônica. 

Diante desse mundo vasto, vasto mundo e pouquíssimas soluções não é possível um favorito. Dá para ter apegos e amores para os quais a literatura bem serve de inspiração.

Não são apenas características físicas que fazem os personagens. Há sutilezas do sentimento e do humor, traços de caráter e todo o universo ao qual pertence este ou aquele. É uma composição complexa e matéria-prima plástica nas mãos do leitor que, nesse encontro estabelece uma relação com seu próprio universo. Quem corporifica tudo isso é o leitor.

Ainda que não seja explícita como a interatividade da era tecnológica que vivemos, há uma interatividade íntima, com vida própria, que muitas vezes extrapola o ponto final de uma história. Há livros que me marcaram tanto que sinto saudade dos personagens como se eles fossem reais. E falo aqui apenas da ficção, pois se atravessarmos a ponte de outros gêneros literários, há outras infinitas galáxias a explorar.

O que quero dizer é que estamos cercados de histórias e personagens e que, se nos dispusermos a dar um destino a eles, escrever é um caminho cheio de aventuras, do inusitado.

Experimente passear por um álbum de fotografias antigas da família. Com a (boa ou má) intenção de escrever, por exemplo, um conto. Tente imaginar o que pode sair daí.

A foto de abertura dessa postagem mostra um álbum de fotografias e histórias que atravessam séculos e pertence à família Buechler, de Frankfurt. E tem uma guardiã, a Angelika. É uma edição primorosa, como um antigo scrapbook, com registro de quatro gerações, mais ou menos. Acho que todas as famílias deveriam ter um guardião dos álbuns de fotografias, que é, na real, uma viagem no túnel do tempo.

Clique em “Estado de espírito”, uma das músicas inspiradoras do livro que vem por aí.


Estado de Espírito
(Vital Lima/Ronald Junqueiro)

Qualquer amor é possivel
se estou disposto
se o caminho é livre
tanto faz ser torto

Não use meias palavras
não importa o tempo
só me deixe a trilha
e o cio ao vento.

Ô, nada me impedirá
de ser meu destino
nem mesmo as muralhas da China...
nem o muro de Berlim...
nem bala perdida...

Nem droga de vida!

Tudo me é transparente
minha pele é ímã.
é casca de fruta!
é tua resina.
Sou porta e janela abertas
( posso ser casulo )
posso ser teu poço fundo,
ponte da tua coragem
para o meu mergulho
ou tua asa
para o fim do mundo!

sábado, 20 de julho de 2013

Querido personagem

Construir personagens é febre da imaginação. By Ronald Junqueiro

Falar sobre a construção de personagens é tema que não se esgota e eu me sinto um amador para dizer que isso se faz assim ou assado. Ideias, conselhos, experiências, dicas, literatura pertinente, caramba! É um bombardeio interminável para quem busca pelas pedras preciosas no mapa do tesouro da criação dos seus tipos inesquecíveis. Se os sites de busca da internet forem acessados, então, prepare-se: é como entrar num mato sem cachorro. Tempo, paciência, muita disposição e fôlego com direito a balões de oxigênio extra... É coisa para quem tem espírito dos grandes navegadores com o ideal dos argonautas. Navegar é preciso em mares nunca dantes navegados.

Todos nós temos nossos personagens memoráveis e tantos e muitos que acabaram saindo das páginas dos romances para ganhar vida em outras artes, como no cinema. E muitos personagens que habitam páginas e páginas literárias foram inspirados em pessoas reais. Fico imaginando como Machado de Assis soprou alma a Capitu e a alma Bentinho; como Flaubert foi dando cores madame Bovary, como Frankenstein entrou para o mundo real como metáfora do irreal, imortalizado pela escritora inglesa Mary Shelley. A escritora, que tinha 19 anos quando escreveu sua ficção, não estava muito longe do que a ciência apresentaria ao mundo depois, a clonagem em tempo real.

Num desses passeios pela internet encontrei uma matéria publicada no jornal argentino Clarin, em novembro de 2002, na qual dez escritores falam sobre a criação de personagens. Cada um deles abre uma porta para mostrar o seu mundo particular.  Gosto do que diz a jornalista e escritora espanhola Rosa Montero, de quem li apenas um livro, “A louca da casa” – isso foi em 2004 e de repente a gente se dá conta nessas pequenas constatações que o tempo corre numa velocidade impalpável. Não sei quando vou voltar para o universo literário de Rosa Montero, mas anseio por isso.

A imaginação, chamada de a louca da casa por Santa Teresa de Jesus, é o fio invisível que conduz tudo o que vivemos no universo do livro, quando nos deparamos com a página em branco a ser preenchida com nossos sonhos e delírios. Assim, Rosa nos conduz pelo romance, que trata da autora e sua relação com a escrita, com todas as portas abertas para a imaginação.

“É que nada é linear! A vida, a nossa vida, a sua, a minha, a de todos, é um absoluto caos, uma confusão que a nossa imaginação tenta organizar inventando, inventando... A sua vida nunca é clara, definitiva, segura, firme. A vida é paródica, contraditória”, diz Rosa Montero.

Minha primeira incursão por esse universo me levou por um dos caminhos que Rosa Montero sinaliza. A construção de um universo ficcional dentro do universo real para onde inventei habitantes que foram ganhando alma em cada sopro.

Lembro-me do encontro dos personagens Leo e Miguel, quando eu escrevia o livro, cada um deles contando de si histórias mirabolantes de personagens que fomos construindo (eles e eu) através do diálogo na viagem que os levava a Berlim. E saquei que aquele era um momento Frankenstein em perfeita união com a louca da casa. E quando eles começaram a ganhar vida, houve momento em que virei refém deles, mas só num primeiro momento. Depois vi que a história era minha, que a imaginação era minha e que eles foram construídos para contar minha história ao sabor da minha imaginação. Mas, na verdade, eles ganharam independência e viraram bons jogadores.

O que são personagens e como eles nascem?

São seres confinados entre páginas e capítulos e que ganham liberdade a cada leitura quando caem nas mãos de alguém. Assim, numa sentença simples.

Eles podem aparecer das formas mais inesperadas. Lembro-me de um exercício que eu fazia na época de escola, ao escrever redações. Juntava o humor de um tio, com a magreza de um vizinho, a voz grossa do irmão mais velho, a cara neutra do meu pai ao falar sobre esoterismo e assim por diante. Então afinava a minha versão Frankenstein à espera de um sopro de vida, uma identidade, um nome e um passado.

Estamos cercados por esse mundo visível pronto para ser sequestrado pela imaginação. E depois que tudo começa não para mais. Ficamos viciados em literatura.

Volto a James Joyce. Gosto como ele nos faz materializar seus personagens com uma maestria própria. Como neste trecho do conto “Contrapartida”, do livro de contos "Dublinenses".

“A campainha soou furiosamente e quando a senhorita Parker chegou ao receptor, uma voz irada, com estridente sotaque irlandês, gritou:

- Mande Farrington aqui!

A senhorita Parker retornou à sua máquina e, de passagem, disse para o homem que trabalhava numa escrivaninha:

- O senhor Alleyne quer você lá em cima.

“Que vá para o diabo”, resmungou o homem, afastando a cadeira para levantar-se. Em pé, via-se que era alto e corpulento. Tinha o rosto flácido e avermelhado; as pestanas e os bigodes loiros. Seus olhos eram protuberantes e sujos. Levantou a tampa do balcão e passando pelos clientes, saiu do escritório, pisando duro.

Com passos lerdos, subiu a escada até o segundo patamar, onde uma porta exibia uma placa de bronze com a inscrição: Sr. Alleyne. Parou ali, ofegante de cansaço e irritação. A voz estridente gritou:

- Entre!

O homem entrou na sala. No mesmo instante, o senhor Alleyne, um homenzinho de rosto bem escanhoado e óculos de aro dourado, alçou a cabeça por trás de uma pilha de documentos. Ela era tão vermelha e calva, que parecia um imenso ovo posto sobre os papéis. O senhor Alleyne não perdeu um segundo:

- Farrington? O que significa isto? Por que sempre tenho de lhe chamar atenção? Pode explicar por que não tirou uma cópia do contrato entre Bodley e Kirwan? Eu lhe disse que era para estar pronto às quatro horas.

sábado, 13 de julho de 2013

Elemento: verdade

Nossa ilha ou nossa galáxia. Não somos extraterrestre. By Ronald Junqueiro

Armários, gavetas, estantes, caixas de guardados, um velho criado mudo e uma nova mesinha de cabeceira que escondem aqui e ali cartas de antigamente, cartões postais adormecidos em um tempo passado, álbuns de fotografias ou pilhas de fotografias espremidas em envelopes. Objetos arrumados em superfícies polidas ou empoeiradas, assim como nossa memória que às vezes nos parece feita de camadas, de aterros, de teias e terrores. Não sei se essa é a melhor imagem para falar de lembranças, de fragmentos que flutuam num tempo onde o calendário não segue uma ordem lógica como a deste exato momento.

Quando comecei a escrever meu romance aprendi, sem método e sem área demarcada, a fazer o que chamei de “escavações mentais” e então me dei conta que eu podia estar numa ilha ou numa galáxia. E por onde começar? Então me vi diante da cumplicidade e do confronto que também são linhas que costuram a solidão, quando esta se apresenta como camisa de força ou fantasia.

A Bolsa de Criação Literária com a qual fui contemplado em 2010, pela Funarte, desencadeou em mim uma tempestade de dúvidas, terremoto sem epicentro tascou-me na cara essa máscara multifacetada de espanto, incredulidade, pânico e interrogações – E agora José? Claro que uso espátulas e pincéis especiais para dar a esse quadro traços dramáticos e cores vibrantes, mas quando nos impomos dilemas, inevitável é uma pitada de exagero.

Comecei a antecipar dificuldades e crises não vivenciadas como a tal da síndrome da página em branco, decidir se a narrativa iria fluir melhor na primeira pessoa e busquei regras, dicas, declarações aqui e ali de escritores sobre o processo criativo, tomei uma alta dose de desânimo com o destino final do livro, inventei obstáculos com a mesma dose habitual de exagero para casos afins de que essa tarefa seria pior que os 12 trabalhos de Hércules. Tudo isso em tom autoconfessional, pois sou pessoa dada a solilóquios, sou dessas pessoas que faz a velha interlocução “cá com meus botões” desde que inventaram os botões e que estes são melhores interlocutores do que zíper ou velcro. E nossos botões, ocupantes de casas que não habitamos, às vezes apresentam boas soluções. Você não precisa buscar resposta longe, ao largo, do lado de fora. Muitas respostas estão em você e não são soluções piramidais para, muitas vezes, falsas equações complexas.

Na semana seguinte, pós-ressaca da notícia de que havia sido selecionado entre os 60 candidatos à bolsa de criação literária, abri uma pasta no Word e comecei a escrever o último capítulo, o Berlinda 20. Pronto, o livro “Berlinda – asas para o fim do mundo” teria 20 capítulos. Escrevi cinco laudas e parei. Não queria estragar a surpresa para mim mesmo. Foi então que comecei a escrever o primeiro capítulo. Decidi alimentar minha inquietude, correr contra o tempo para chegar ao último capítulo e isso me custou muitas noites de sono. Escrever me parece também uma brincadeira de gato e rato. Eu e o texto.

Não há tanto mistério no mistério que se pode atribuir ao ato de escrever, e sim a descoberta de sensibilidades. Isso, no plural. Porque ao longo desse processo, tudo começa a ser povoado pelas lembranças, pelos personagens, pela exumação que fazemos nos arquivos mortos, nas escavações que se multiplicam em terrenos emocionais, de elos perdidos, de sons, de cheiros, de visões e de vivências. Nesse sentido, experimentei a mais longa viagem em um “Tornado” de um parque de diversões. Como aconteceu uma vez no inverno passado em Hamburgo, em 1992.

Escrever não é coisa para extraterrestres. Vasculhe seus guardados. Tudo está em sua volta e, com certeza, a maior parte de tudo está dentro de você. Mesmo as coisas que lhe parecem banais ou que para você poderiam parecer banais aos olhos alheios. Mas o que são olhos alheios se o mais importante é o seu olhar? Nem o implante de retina mudaria o que você viveu. E o que você viverá, quem sabe? O que virá depois espere, se for o caso.

Se você decidir escrever, faça-o sem se importar com quem vai ler. Em primeiro lugar, você escreve pra você. Em segundo lugar, use a verdade como o elemento mais íntimo da solidão.

Escreva com verdade. Como James Joyce em “Dublinenses”, um dos livros mais encantadores que já li, em minha opinião, pela simplicidade do escritor de contar o que lhe é próximo. O livro reúne 14 contos, escritos entre 1904 e 1905.

sábado, 6 de julho de 2013

Elemento: solidão


Berlim. Manhã de sol. Mauerpark. Prenzlauer Berg. By Ronald Junqueiro.
 Solidão não pode ser comparada ao silêncio absoluto, ao silêncio de um minuto pelos mortos e à ausência que atribuímos a coisas e pessoas que povoam recônditos criados em nossa memória ou ao vazio aberto pela desocupação recente de um espaço próximo a nós. Solidão não é sombria como é o abandono, ledo engano. Ela não é coisa do passado e nem o passado é atributo para a existência da solidão, posto que seja presente imediato.  Nós somos a solidão. E assim seremos até o fim. E quando tentamos nos enganar dizendo que ela é apenas uma capa que se pode colocar num cabideiro atrás da porta, ela se revela em reflexos no espelho ou em superfícies espelhadas que nos atraem - e nas sombras. A solidão é nossa pele, estamos nus diante de nós mesmos.

Escrever afinou meus sentimentos com a solidão no que ela representa como abrigo ou caverna.  Às vezes nos basta um teto, o aconchego da casa sem habitantes. Às vezes precisamos da alma dos bichos da noite para nos aquietarmos numa escuridão que, se para os outros pode parecer medonha, assustadora, provoca em nós sensação de brilho intenso, pois a luz vem de outra fonte e pode ser uma epifania.

Trazia na cabeça um tratado de coisas ouvidas aqui e acolá sobre escrever como fazem os escritores e poetas.

Escrever era o meu ofício nos vários anos da minha vida que passei numa redação de jornal. Mas ali o barato era outro, elogio e esculhambação geral eram o chiclete já gasto e sem gosto na boca do editor, era uma época quando essa onda de assédio moral não sabia nem o que era uma beira da praia. E o texto lutava contra o tom burocrático da notícia. No início, com todo o entusiasmo de foca, pintava sonhos inconcebíveis de ser jornalista internacional, correspondente de guerra. Mas o tempo e os desvios cuidaram de desligar o fogo e destampar a panela de pressão do onírico.

Nunca havia passado pela minha cabeça ser escritor. Ou melhor, me candidatar à profissão de escrever como escritor. Havia em mim uma sensação remota da impossibilidade de ser e o que eu gostava mesmo era de ler. E eu era um leitor fominha, voraz, sedento, com um enorme vazio a ser preenchido por histórias e personagens. Quando descobri o caminho para a biblioteca pública, era o próprio a rato a espantar as traças escondidas por traz das lombadas. A grana era curta para o luxo da farra literária, comprar livros não entrava no orçamento familiar, mas isso não impediu minha embriaguez da descoberta de que ler era porre sem ressaca de dor de cabeça. Mas volto ao tema depois.

Saquei, desde então, que a solidão não era privilégio do escritor, mas do leitor também. Você pode até compartilhar momentos de leitura como eu fazia quando garoto obrigado a ir até a casa de uma tia-avó cega para ler histórias que a ajudariam a cair no sono da sesta. A obrigação tenha compensações. Eu gostava de ler e exercitar a paciência para saber quando a velhinha estava dormindo. Na segunda página já lhe cutucava o braço, esbarrava na rede e esperava o sinal. A tia-avó cega pigarreava e eu chegava a praguejar algumas vezes, mas logo me arrependia. Não por remorso. Não queria desejar mal para a senhorinha que galopava para o centenário. Garoto interesseiro. Eu queria mesmo era que ela dormisse serena, roncando leve como fazia, pois os olhos eram brancos e não deixavam pistas de que a velha estava noutra. E quando ela não pigarreava mais dizendo que estava acordada e que eu deveria continuar lendo, eu vivia um extremo de felicidade. A libertação tem disso.

Eu marcava a página com um velho marcador de papelão, fechava o livro, depositava-o com todo o cuidado numa poltrona num canto do quarto, saia pé ante pé, me enfiava no corredor e desembocava no quintal enorme da casa da cega, onde um taperebazeiro frondoso me esperava como se tivesse sido plantado num tapete amarelo de taperebás, fruta que cheira na minha lembrança. Era o fruto da liberdade. A liberdade de gosto azedinho que virava suco e picolé. E até chibé.

Não quero desviar tanto do assunto. O que me passa pela cabeça, quando escrevo neste diário, é o quanto a solidão me alimentou em mão dupla: como leitor e agora nesses primeiros passos de escritor ou pretendente ao ofício, e ambos são vícios.

A solidão não é o pior elemento das nossas vidas como dizem à boca pequena. Ela tem uma natureza benfazeja, com o gosto da fruta que mais lhe trouxer felicidade à alma e ao paladar.


Quer provar? Escreva. 

Argamassa e paleta de cores


Cantinho do meu universo particular. Desarrumação. By Ronald Junqueiro
Olho o texto com a disposição do operário da construção civil e com uma paleta de cores de um pintor. Isso não é de agora. Começou no primeiro exercício de redação passado pela professora do grupo escolar, quando professora era professora e não “Tia”, tratamento meio promíscuo inventado há algumas décadas atrás e por motivos que para mim são difusos.

E esse encantamento com o texto tem um nome gravado na memória: professora Nely Bastos Cavalléro, pessoa alegre, jovial, cheia de energia positiva, professora por vocação e não por essa conversa mole de que faz o que faz por sacerdócio, como se o ofício fosse para o santo em porta de oratório.  Era professora porque era professora e acreditava no que fazia, não era uma tiazinha dessas que acabam sendo alvo de desaforo de aluno e pais problemáticos. E muito menos a Tiazinha que virou estrela de filme pornô.

A professora Nely tinha autoridade quase natural e dela se investia do alto dos seus um metro e pouco mais de 50 centímetros. Cabelos sempre arrumados e uma pele branquinha que denunciava qualquer rubor de contentamento. Ela, se tinha problemas fora da sala de aula ninguém saberia. Pra nós, “sobrinhos” da escola pública, ela parecia uma esbanjadora de felicidade, de alegria renovada.

Mais tarde conheci outros professores que souberam bem cuidar da sementinha plantada pela professora Nely, com quem aprendíamos a ler alguns textos recomendados oficialmente e uma ou outra boa crônica que ela trazia para ler, subvertendo a ordem que nos fazia decorar, em tom dramático, cheio de chantagem emocional, o Olavo Bilac com seus versos sobre a avó de oitenta anos. Como eu não era neto e nem mais avó tinha, o poema pouco me comovia. Mas eu me fingia comovido. Em todo caso, quero compartilhar “A avó”, poesia do Bilac que minha mãe lia com o livro na mão e que meu pai sabia de cor. De certa forma, com a poesia aprendíamos a respeitar os mais velhos, que mais pareciam objetos decorativos quando eram adotados pela família e neste ponto vou poupar detalhes sobre obrigação e afeto.

A avó, que tem oitenta anos,
Está tão fraca e velhinha! . . .
Teve tantos desenganos!
Ficou branquinha, branquinha,
Com os desgostos humanos.

Hoje, na sua cadeira,

Repousa, pálida e fria,
Depois de tanta canseira:
E cochila todo o dia,
E cochila a noite inteira.

Às vezes, porém, o bando

Dos netos invade a sala . . .
Entram rindo e papagueando:
Este briga, aquele fala,
Aquele dança, pulando...
A velha acorda sorrindo,
E a alegria a transfigura;
Seu rosto fica mais lindo,
Vendo tanta travessura,
E tanto barulho ouvindo.

Chama os netos adorados,

Beija-os, e, tremulamente,
Passa os dedos engelhados,
Lentamente, lentamente,
Por seus cabelos, doirados.

Fica mais moça, e palpita,

E recupera a memória,
Quando um dos netinhos grita:
"Ó vovó! conte uma história!
Conte uma história bonita!"

Então, com frases pausadas,

Conta histórias de quimeras
Em que há palácios de fadas,
E feiticeiras, e feras,
E princesas encantadas...

E os netinhos estremecem,

Os contos acompanhando,
E as travessuras esquecem,
— Até que, a fronte inclinando
Sobre o seu colo, adormecem...

Olhando ao largo, hoje, penso que ter avó é um barato. Lembro-me da minha irmã mais velha, avó queridíssima de todos os netos, que cedo sofreram um golpe duro quando ela partiu, não para Jerusalém, como pretendia, mas para além daqui. E nem precisou mais do passaporte que chegaria apenas no dia seguinte. Visto pra quê, né?

No meu livro “Berlinda – Asas para o fim do mundo” tem uma avó que em muito lembra a avó do poema de Bilac. Criei uma avó na ficção. Uma homenagem boa aos nossos velhos, que por eles tenho grande afeto.

Como os velhos professores que vieram depois da professorinha Nelly. A professora Enilda que amava Cecília Meirelles e nos apresentou o “Romanceiro da Inconfidência” e o professor Jurandir que nos ensinou a ler com gosto – e gozo – já nos primeiros mergulhos na fonte de José Lins do Rego, Lima Barreto e Guimarães Rosa. O professor era fissurado nas palavras, vocábulos, neologismos, metáforas e significados. Numa determinada aula, virou-se para a turma, e perguntou qual era o sinônimo da palavra ‘safirente’. Antes mesmo de perguntar exibia na cara a expressão de um vitorioso. Nenhum de nós sabia o que era ‘safirente’.

O professor Jurandir postou-se de costa para a classe e, esgrimindo um pedaço de giz na mão, escreveu no quadro negro, quando o quadro era negro, a palavra que ele decifraria para nós naquele momento. Coisa de gênio. Safirente era uma palavra nova que derivava de safira, da pedra azul com a qual o escritor matizara o firmamento na frase “um céu safirente”. Mais um neologismo do mestre Guimarães Rosa e só agora entendo o tom da voz do professor. Ele falava de um jeito “Taurophtongo”, um neologismo criado por Guimarães Rosa que quer dizer mugido, voz de touro. O mestre juntou o termo grego ‘tauros’ ou touro e ‘phtoggos’, que é o som da fala.

Não guardei na memória o texto de onde ele tirou a frase. Mas o encantamento ficou. Aprendi que palavras são encantadas.

Como num jogo de encaixe, um tangram, um puzzle, vou juntando essas peças todas e desenho uma aquarela para mim. Ou levanto tijolo por tijolo num desenho mágico, inspirado pelo grande Chico Buarque. Sou prisioneiro desse encantamento, que também liberta.

A quem interessar possa, a professora Nilce Sant'Anna Martins lançou, em 2001, O Léxico de Guimarães Rosa, pela Edusp


quinta-feira, 4 de julho de 2013

La nave va

Bairro da Pedreira. Belém do Pará. By Ronald Junqueiro
Compartilhar a experiência do processo criativo do romance "Berlinda - Asas para o fim do mundo", que me jogou em uma nova trilha ou caminho nunca dantes trilhado, me fez conceber este diário. Não queria pensar em rituais e datas significativas para escrever, apenas registrar esse momento que, espero, seja propício para sonhar e realizar novas viagens. Tomara que o  "Diário da Berlinda" tenha vida longa.